quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Dr. LUÍS BELEZA DE ANDRADE - V

Armazéns do mestre de campo José Vicente de Andrade Beleza
(pai do Dr. Luís Beleza de Andrade)
Bartolomeu Pancorbo me dizia que não alugasse meu Pai
os seus armazéns, para estarem prontos, para se fazer o negócio



No século XVII o comércio do vinho generoso produzido em riba Douro encontrava-se na quase total dependência do mercado inglês. Se o mercado inglês adquirisse muito vinho os preços subiam, mas se diminuisse as suas compras os preço desciam. É a lei da oferta e da procura em toda a sua pureza então vivida, pois não existia um organismo que tutelasse os interesses dos produtores.
As consequências da diminuição das exportações refletia-se de imediato – vinhateiros, quintas, armazéns acompanhavam as tensões do barómetro vinhateiro. Era a miséria da lavoura.
O Conde da Ericeira, autor do Portugal Restaurado, estabeleceu forma de evitar essas crises cíclicas totalmente dependentes da actuação do mercado inglês. Atentou na riqueza do gado lanígero existente nas Beiras, riqueza que não estava explorada e decidiu criar a indústria de lanifícios na Covilhã e em Portalegre.
Surgiram logo em 1681 várias fábricas de pano e «droguetes» (tecidos baratos à semelhança do droguet francês) nas lindas da Serra da Estrela e de Portalegre. De tal forma essa indústria desenvolveu-se que, decorridos escassos cinco anos, em 1686, a nossa indústria têxtil vestia de pano o Reino e conquistas, com prejuizo das indústrias têxteis estrangeiras, sobretudo inglesas.
Logo o governo inglês retornou com um plano aliciante junto do governo português: constatou que o maior valor do mercado externo português era o do vinho produzido pelas uvas amadurecidas naquele cadinho de xisto precâmbrico solcalcado no Douro. Vai daí incumbe o seu embaixador em Portugal, John Methuen, de propôr ao governo de D. Pedro II a concessão de pauta mínima para a entrada no país dos panos ingleses, com a contrapartida da concessão por parte do governo inglês da pauta mínima a favor da entrada do vinho do Porto.
O engodo mostrava-se tão aliciante que logo implicou deferimento. Então, em 1703, estava o nosso governante Roque Monteiro Paim a assinar, em Lisboa, o Tratado de Methuen que desgraçou a economia portuguesa, sobretudo a região duriense.
Celebrado o acordo o mercado português foi inundado pelos panos ingleses sem a contrapartida de acréscimo relevante de exportação dos nossos vinhos. Mas estes continuaram a subir de preço.
De harmonia com o clausulado no tratado, com a baixa dos impostos de exportação, o vinho do Porto chegava à Inglaterra mais barato. Por outro lado, a indústria têxtil inglesa escoava mais panos para o mercado português. Resultado – aumento de exportação do vinho, com a subida aliciante dos preços para o lavrador; e aumento de importação de panos ingleses com prejuízo da nossa indústria.
O lavrador, para aumentar os seus lucros, começou de plantar vinha a esmo. Em breve surgiu a crise da fartura. Os preços baixaram, o vinho não tinha escoamento pela superabundância da produção.
Luís Beleza de Andrade, na extensa carta de 18-5-1758, dirigida a José Moreira Leal e Manuel Pereira de Faria, inquiridores dos actos dos corpos sociais da Companhia, na sindicância suscitada pelas denúncias do Padre Mestre Frei João de Mansilha, a que adiante se dará minuciosa notícia, escreve a elucidar a sua actuação para debelar a crise duriense:
Primeiramente, que o motivo que tive para entrar por vários modos a procurar todos os meios de dar saída aos vinhos do Douro, fora por que indo nos anos de 1753 e 1754 assistir às vindimas de meu Pai na vila de Valdigem, aí vira, que a gente geralmente ia morrendo, e com tanto excesso que se iam diminuindo muitas famílias; e indagando o motivo daquela mortandade alcancei que quase tudo procedia da pobreza, que por ser geral, nem tinham com que se curassem, nem quem os pudesse socorrer, sendo a doença de que morriam umas maleitas das quais escapavam todos aqueles que tinham dez ou doze tostões com que comprassem quina, e ter alguns dias de dieta.
Em várias diligências que na carta discrimina empenhou as suas preocupações mas sem êxito no escopo proposto. Entrementes, em acto culminante, um grão facto sobreviveu, como escreve:
Ao passo que cuidava adiantar as ditas três dependências, encontrando-me com o Padre Mestre Doutor frei João de Mansilha, com quem até ali não tinha amizade alguma, sabendo que ele das terras do Douro[1], lhe comuniquei os meus pensamentos, que ele logo abraçou e louvou; e entrando dali por diante a consultar tudo com ele, e prometendo-lhe parte na sociedade da Rússia, ainda que ele para a jornada não contribuira, prosseguimos nas dependências declaradas. Entrámos a procurar mais caminhos e para consultarmos na matéria convoquei alguns lavradores dos principais do Douro para um conclave em minha casa, no qual votou o dito Padre Doutor Mansilha a quem também tinha convocado, que o sistema melhor era fazer-se uma demarcação das Serras cujo voto agradou a todos, e roguei ao dito Padre Doutor me fizesse a súplica em nome das comunidades por quem a fiz assinar, e a remeti para a Corte, e veio a informar pelo Governador das Juntas Bernardo Duarte de Figueiredo que também nunca informou. Neste tempo soube, que D. Bartolomeu Pancorbo ia para Lisboa esperar as frotas e receber os dinheiros que nelas esperava; e o persuadi a que quisesse falar em se fazer uma companhia, em cujo pensamento praticámos depois com o Padre Doutor e prometeu o dito D. Bartolomeu Pancorbo que falaria, e nos daria parte, e logo que chegou à Corte brevemente o fez remetendo-nos uns artigos para que os fizéssemos assinar pelos lavradores, e lhos remeter-mos; e que logo se concluía o negócio; e me dizia que não alugasse meu Pai os seus armazéns, para estarem prontos, para se fazer o negócio ao que satisfiz.
Fomos para as vindimas, e lá de acordo com os mais lavradores reformámos os artigos e os assinámos, e depois nesta Cidade de donde os enviámos ao dito Pancorbo; mas não podendo eu ir, e reconhecendo a minha curta inteligência pedi ao dito Padre Doutor, que quisesse ir; e lhe dei sessenta moedas da minha bolsa; pois ninguém quis contribuir para as despesas.
O teor bem explícito desta carta ajuda a compreender o que escrevemos na segunda parte deste estudo sobre o Dr. Luís Beleza de Andrade.
(continua)

[1] Efectivamente, o dominicano João de Mansilha nasceu a 18-5-1711, no lugar de Santa Marta da freguesia de S. Miguel de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, e era filho de Francisco Pereira Pinto e de sua mulher Feliciana de Mansilha. O Padre Mansilha teve uma filha ilegítima havida em Caetana Guedes, mulher solteira, baptizada com o nome de Helena (que tomou o nome de Helena Guedes) e que nasceu em 1-12-1737 na actual freguesia de Santo André de Sanhoane, também do concelho de Santa Marta de Penaguião, a qual mudou o nome de Helena para Maria no sacramento do crisma.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

BELEZA DE ANDRADE E O MOTIM DE 1757- IV

Foto nº 1
Casa do Morgado de Paço de Sousa instituido por José de Azevedo a favor da filha D. Sebastiana Máxima de Azevedo e genro Pedro Leite Pereira de Melo, procedente da Casa de Campo Belo, cuja descendência está nos Condes de Alpendurada

Foto nº 2
Primeira folha da acta da sessão da Câmara do Porto de 19-4-1757

Foto nº 3
Segunda folha da acta camarária de 19-4-1757


Foto nº 4
Terceira folha da acta da sessão camarária de 19-4-1757 onde figura a assinatura de Luis Beleza de Andrade em sétimo lugar e a do pai, o mestre de campo José Vicente de Andrade Beleza , em sexto lugar

A criação da Companhia feriu interesses das mais diversas espécies e a oposição ao normal funcionamento do novel organismo não se fez esperar.
No estado actual de conhecimentos torna-se difícil apurar com segurança quem planeou a revolta. Infelizmente perderam-se documentos importantes como o processo crime instaurado aos amotinados que culminou em muitas condenações a penas severíssimas, como adiante se discriminará.
Luís Beleza de Andrade, em carta de 13-10-1756, portanto um mês decorrido da promulgação do Alvará instituidor, endereçada a Sebastião José de Carvalho e Melo - o todo poderoso 1º Ministro, em breve agraciado, em 1759, com o título de Conde de Oeiras, e em 1769 com o de Marquês de Pombal -, a agradecer a escolha para presidir à respectiva Junta directiva com a designação de provedor, queixa-se que a gente ordinária, se faz indigna, não por acções, mas por maligna intenção, que se não fora o temor, não sei o que farião
[1].
As suas previsões concretizaram-se poucos meses decorridos, como atrás ficou relatado, mas na carta não refere as forças sociais pressionantes e que em breve actuariam como motores ocultos do motim.

Anteriormente ao estabelecimento deste organismo, que tinha por objectivo resolver a crise da qualidade dos vinhos do Douro, já inimigos declarados tentavam por todos os modos gorar os esforços desenvolvidos neste sentido.
Luís Beleza, quando em Maio de 1756 diligenciava colocar vinhos na Rússia viu, por três vezes, os ingleses retirarem-lhe os mestres e pilotos do navio preparado para o transporte.
Também, comerciantes ingleses e os seus representantes portugueses no Porto, não rebuçavam as suas posições hostis. Ainda em Junho de 1756, contrariando procedimentos correctos, modestos comerciantes, caixeiros e moços ingleses procediam maliciosamente ao embarque de vinhos em navios da frota para o Brasil, no tempo certo que era o mês de Agosto, de maneira a que o vinho embarcado corresse o risco de adulteração por força dos calores estivais. Ao tomar conhecimento do sucedido, o próprio primeiro ministro interveio dando ordens no sentido de terminar tal indisciplina, mas a ousadia foi tanta que vários comerciantes e estivadores, partidários dos ingleses, desobedeceram, numa primeira manifestação sediciosa contra a Companhia ainda em projecto, como escreveu o Dr. António de Barros Cardoso na revista Douro – Estudos & Documentos
[2].
Os ingleses estabelecidos no Porto viam que a criação da Companhia cerceava a liberdade da sua actuação na mercância dos vinhos e aguardentes, e impedia-os de penetrar no mercado brasileiro pois o monopólio de exportação para aí ficou reservado à Companhia. Efectivamente, pela norma do § XXIV do Alvará instituidor nenhuma pessoa podia mandar, levar ou introduzir nas capitanias de S. Paulo, Rio de Janeiro, Baía e Pernambuco os referidos vinhos, vinagres e aguardentes que houverem de sair nas esquadras da cidade do Porto ou forem produção das terras do Alto Douro.
Acresce que o exclusivo do fabrico e venda da aguardente nas províncias do norte de Portugal reservado à Companhia prejudicava os interesses dos ingleses que, com o propósito da destilação e venda de aguardentes, haviam adquirido utensilagem dispendiosa.
Nos intervenientes activos na revolta avultavam artífices mecânicos, tanoeiros e taberneiros da cidade como se vão identificar adiante na apreciação das penas cominadas.
Os tanoeiros portuenses desfrutavam, no século XVIII, de bem-estar, e alguns de riqueza e influência, como José de Azevedo que siderou os Ingleses ao saberem das partidas de vinhos por ele compradas no Douro prejudicando a estes o negócio, que fundou o opulento morgado de Paço de Sousa para a filha D. Sebastiana Máxima de Azevedo e Sousa e genro Pedro Leite Pereira de Melo (ver foto nº 1), e que uma outra sua filha D. Maria Clementina de Azevedo e Sousa casará, contra a vontade de José de Azevedo, diga-se, em 1786, com Cristóvão Guerner, deputado da Companhia e autor do livro Discurso Histórico e Analítico sobre o estabelecimento da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, cuja descendência corre num dos ramos da família Beleza de Andrade (ver meu estudo na revista O Tripeiro de Junho 1959, ano XV da V série, pág. 51; Anuário da Nobreza de Portugal, III, tomo II, 1985, pág. 1113, e III tomo I, 1985, pág. 206 em título Conde de Alpendurada).

Os tanoeiros arregimentavam-se em corporação própria e desde 1621 tinham Confraria erecta no Mosteiro de São Francisco.
Considere-se que, para fazer e reparar os 70.000 cascos utilizados anualmente na região do Douro, necessitava-se de uma grande mão de obra.
Um anónimo inglês coevo dos acontecimentos, escreveu que os tanoeiros temiam que o novo organismo não lhes pagasse tão bem e tão prontamente como os negociantes ingleses. Ademais, a prorrogativa da Companhia, contida no § VIII do Alvará, de ter a possibilidade de requisitar os tanoeiros e oficiais do ofício indispensáveis para tratar do vasilhame da Companhia, afrontava os interesses da classe no tocante ao livre exercício da profissão e até punha em causa os preços do próprio vasilhame.
Os taberneiros e armazenistas de vinho tinham sérios motivos de oposição – os estatutos conferiam o exclusivo da venda a retalho do vinho da Companhia na cidade do Porto e num perímetro alargado que começou pelas três léguas (§ XXVIII). A sentença refere-se a estes interesses prejudicados:
Desta Alta Traição se mostra serem os principais Autores os Réus conteúdos no § I da Pronúncia da Devassa «…» porquanto, assim que a Câmara reduziu as Tabernas desta Cidade a número certo se principiaram a comover os Taberneiros mais revoltosos, e obrigaram os outros a concorrer com dinheiro para as despesas de um pleito, e outros requerimentos respectivos ao mesmo fim de fazer revogar a sobredita Resolução, auxiliados pelo Réu Tomás Pinto; e logo que tiveram notícia da confirmação da Companhia do Alto Douro, se tratou no Armazém de Caetano Moreira da Silva, de a destruir com um levantamento do Povo…
[3].
O marquês de Pombal acusou os ingleses interessados no negócio de vinhos de serem os promotores.

Já na carta de 2-10-1756, para o Padre Mestre João Mansilha a descrever o regozijo da população do Douro, Luís Beleza de Andrade, um anti-britânico declarado, esclarece terem-lhe chegado notícias que os ingleses deram ordem aos seus comissários de consertarem toda a louça para a encherem com o vinho comprado na bica. Desta forma, explica Beleza, os ingleses proviam-se de vinho barato pella muita necessidade em que aquellas pobres terras ficarão da ruína antecedente.
E Luis Beleza de Andrade logo aconselha o destinatário frade a consultar o Primeiro Ministro sobre a interpretação a dar ao artigo 31º dos Estatutos pello qual me parece a Companhia os pode embaraçar em observância das palavras que dizem «nenhuma pessoa poderá embarcar para a cidade do Porto alguns vinhos sem serem diregidos com cartas de guia dos Lavradores, etc.» e como Vª Rmª sabe que os Ingleses quando comprão os vinhos na bica os tirão logo dos lagares dos labradores para os seus tonéis; e estes vinhos não podem trazer carta de guia de casa dos Lavradores, vindo dos armazéns dos mesmos ingleses «…»
Parece não sofrer dúvidas que pessoas dotadas de certo teor cultural interferiram, pois na conjuntura apareceram pasquins com imputações difamatórias à Companhia, ao provedor e aos restantes membros da Junta. No processo-crime da alçada, procurou-se indagar a autoria de vários papeis que apareceram.
A sentença dá conta dessa realidade, ao concluir que o réu Caetano Moreira da Silva, com Domingos Nunes Botelho e o soldado do regimento de infantaria da cidade do Porto José Pinto de Azevedo procuraram quem lhes escrevesse «certo papel que diziam era pequeno, porém, que dariam pelo trabalho de o copiar algumas moedas ou o que lhes pedissem: Depois do que foram aconselhar-se com Advogados, e rogaram ao Bacharel Nicolau da Costa Araújo lhes fizesse o papel sedicioso, a que chamavam Requerimento».
Outros papéis também constaram da devassa como o escrito por António Caetano Moreira por ordem do seu pai Caetano Moreira da Silva.

A alçada mandada ao Porto para castigar os amotinados, veio precedida de corpos de tropa cujos elementos foram aboletados pelas casas dos moradores.
Na carta de 10-4-1757, endereçada pelo rei D. José I ao Senado da Câmara, veio determinado que o maior peso dos referidos boletos devia carregar sobre os bairros donde saíram as primeiras vozes do referido tumulto e que as tropas seriam providas pelos patrões das casas onde tiverem os boletos de tudo o necessário para o seu diário alimento, e que o pagamento dos soldos e munições de guerra de que necessitarem era feito por contribuição da cidade na qual serão também sempre agravados os sobreditos bairros
[4].
Ficaram isentos desta obrigação os fidalgos João de Figueiroa Pinto, Luís de Melo Pereira Coelho Correia, Martinho de Soveral de Carvalho e Vasconcelos, Jerónimo Brandão Pereira Perestrelo, Martim Afonso de Melo, José Cardoso de Carvalho e Fonseca, Jerónimo Leite Pereira Pinto Guedes, Carlos Vieira de Melo, João Rodrigo Brandão Bezerra de Lacerda, Bento Luís Correia de Melo, Vicente de Távora e Noronha Leme Cernache, Francisco Diogo de Sousa Cirne Machado Azevedo, José Vicente de Andrade Beleza e o filho Luís Beleza de Andrade, Dom Lourenço de Amorim, Fernando da Costa de Mesquita e Sampaio, Francisco Manuel Correia de Lacerda, Joaquim Leite de Azevedo, Manuel de Sá Brandão Freire, Francisco António Leite Pereira, senhor da Casa de Campo Belo, e Diogo Homem Carneiro de Vasconcelos
Os mencionados fidalgos, foram convocados à Câmara, reunida em 19 desse mês de Abril, com o juiz de fora Dr. Luis Xavier de Azevedo, e os vereadores e procurador da Câmara, a fim de lhes ser notificada oficialmente a isenção, como consta da acta da sessão camarária: para haver de se lhe participar o aviso que a ela fez o Desembargador do Paço João Pacheco Pereira de Vasconcelos «…» que se acha conhecendo do execrando desacato cometido às suas Reais Ordens no dia 23 de Fevereiro em que declarava ser o mesmo Senhor servido isentar aos sobreditos de lhe serem aboletados soldados das Tropas que se acham nesta cidade por ora, e de que tinha feito presente ao mesmo Senhor a grande e devida fidelidade e zelo do Real Serviço que tinha conhecido nas pessoas desta qualidade.
E logo foi proposto pelo Juiz de fora e vereadores que os vereadores Manuel de Figueiroa Pinto e João Pacheco Pereira fossem à presença do dito desembargador do Paço João Pacheco Pereira de Vasconcelos expressar o seu reconhecimento pela mercê que recebiam da piedade e grandeza de Sua Majestade e inteireza e justiça do dito legado de Sua Majestade em cuja qualidade foram fazer os ditos protestos.
Os fidalgos presentes unanimemente assentaram que todos fossem à presença do mesmo desembargador do Paço legado assegurar (“segurar” - sic)
o fiel reconhecimento que têm da especial mercê com que Sua Majestade os honra.
De envolta requereram aos ditos Juiz e vereadores que em nome de todos recordassem a Sua Majestade os desacatos graves porque eles não podiam fazer outra demonstração desta estimavelíssima mercê mais que protestar a sua profunda obediência porque sendo as vidas e as fazendas de Sua Majestade só as podem sacrificar no seu Real serviço executando e fazendo executar religiosa e inviolavelmente as suas Reais ordens, de que mandaram fazer este termo que todos assinaram (ver as fotos da acta sob os nºs 2 a 4).
Depois de redigida a acta pelo escrivão Lourenço de Barros Pereira e rubricada pelos vereadores, assinaram aqueles nobres amerceados com a munificência régia da isenção dos boletos
[5].
O mesmo é apodá-los, emparelhando-os com uns da coeva história nacional, fidalgos da brigada de reumáticos. Pois a história repete-se num eterno retorno do idêntico na sugestiva formulação de Friedrich Nietzsche.

Decorreu um processo de tramitação célere, e a sentença da Alçada, proferida em 12 de Outubro de 1757, é assinada por doze juízes.
À pena de morte pela prática do crime de Lesa Majestade de primeira cabeça, com a confiscação de bens, foram condenados 20 homens, estando oito ausentes, e cinco mulheres.
Os réus presentes condenados à pena capital foram José Fernandes da Silva o Lisboa, o último juiz do povo da cidade do Porto, Caetano Moreira da Silva, José António de Beça, Domingos Nunes Botelho, Filipe Lopes de Araújo, Tomás Pinto, Baltazar Nogueira, Marcos Varela, vendeiro e mercador de vinhos, José Rodrigues de alcunha o Grande, João Francisco de alcunha o Mourão, Manuel da Costa sargento do Regimento de Infantaria da Guarnição da cidade do Porto, José Pinto de Azevedo e António de Sousa de alcunha o Negres, ambos soldados do mesmo Regimento.
Sobre o condenado Marco Varela lê-se na sentença:
Também consta que Marcos Varela, suposto se não pudesse averiguar se foi ou não ao dito Motim, ou concorreu para ele, como se faz verosímil, por ser também Vendeiro e Mercador de Vinhos, e ter já concorrido com dinheiro para os primeiros pleitos e requerimentos respectivos a não haver número certo de tabernas, é indubitável que depois aprovou e aplaudiu petulantemente o Tumulto, indo logo no dia seguinte com os mais Rebeldes tumultuosamente aos Armazéns da Companhia, aonde confessa, comprara oito pipas de vinho; e também, que passando acima do Douro, comprou mais dezasseis pipas, e proferiu com tremenda temeridade muitas palavras imediatamente ofensivas da independente Soberania e da Real Pessoa de Sua Majestade Fidelíssima «…»
[6].
Na execução da pena, com baraço e pregão, pelas ruas da cidade, seriam levados ao Campo da Alameda fora da Porta do Olival, aonde principiou esta horrenda sedição e nas forcas, que para este suplício se levantarão, morram de morte natural, depois do que lhes serão separadas as cabeças e postas nas ditas forcas, e seus corpos feitos em quartos serão postos nas outras forcas que também se levantarão defronte da porta do juiz do povo,
e na Rua Chã, fora das portas de Cima de Vila e no Terreiro de Miragaia.
Os réus ausentes foram Mateus Francisco, António de Sequeira Teixeira, José António da Silva, estanqueiro, alfaiate e vendeiro, e seu cunhado Manuel de Sousa, Francisco de Araújo, Manuel Francisco de alcunha o Cozido, o Tatevitate, João Baptista mulato, holandilheiro, e José Ribeiro oleiro e marinheiro, de alcunha o Cheta, cujas penas serão executadas em estátuas das suas figuras.
As rés mulheres condenadas à pena capital foram Gertrudes Quitéria mulher de Caetano Moreira da Silva, Custódia Maria de alcunha Estrelada, mulher de Filipe Lopes de Araújo, Maria Pinto mulher do soldado António de Sousa o Negres, Ana Joaquina mulher de José de Sá, e Páscoa Angélica, solteira, meretriz.
Os réus condenados a que com baraço e pregão, pelas ruas da cidade, sejam açoutados e degradados para servirem nas galés por toda a vida, foram José da Silva Ribeiro Guimarães, Casimiro Francisco, Manuel Teixeira, Cristóvão Dias escravo de António da Costa Cardoso, José António de alcunha o Lávai, Manuel Barbosa chamado o Fonseca que foi criado do reitor de Fânzeres, Manuel Pereira, último escrivão do povo da cidade do Porto, e Geraldo Pimenta mulato, ferrador.
Os condenados a açoutes e para servirem nas galés por tempo determinado foram Manuel José de alcunha o Bocarra, João Simões, Manuel Teixeira, sapateiro, António Pereira de Matos, Alexandre Guedes Vicente, Tomé Gonçalves Guimarães, Francisco José de Azevedo de alcunha o Comboy, Manuel da Silva criado de servir, Manuel Alves Pereira de alcunha o Brasileiro, oleiro, que foi o penúltimo juiz do povo, Rodrigo de Távora soldado do Regimento de Infantaria da Guarnição da cidade do Porto, Manuel Alves Preto, João Cardoso, José Moreira picheiro (o mesmo que picheleiro), Tiago Vasques, galego e mercador de vinhos, Jacob Mosqueira de alcunha o Lisboa, Domingos Afonso chamado o Naire, Francisco António sapateiro e galego e Francisco de Moura também galego.
Degredados para Angola: José Francisco Ferreira o Ilhéu, José Gomes de Oliveira, Manuel de Sousa Vale, António de Araújo tanoeiro, Manuel de Oliveira e Sousa, Jerónimo Rodrigues alfaiate, Luísa Teresa, Joana Maria a Brejeira, Feliciana Moreira, Maria Eugénia, Teresa de Jesus de alcunha a Palaia, Bernarda Rodrigues, Maria da Silva, António José da Fonseca e Maria Pinto mulher de Mateus Francisco, José de Sá torcedor de seda, António de Meireles, António Ferreira alfaiate, Isabel Ferreira mulher do réu José António estanqueiro ausente, e Antónia Maria de Freitas.
Atendendo à debilidade da prova que resulta contra o réu Nicolau da Costa Araújo, advogado, pois além de ser singular o juramento de Caetano Moreira da Silva enquanto a princípio disse que o dito Bacharel lhe aconselhara se podia sem receio executar este Motim e delito «…» e posto se prove e o mesmo réu confesse nas suas perguntas que o dito Caetano Moreira e outros foram aconselhar-se com ele, contudo também consta destes autos que aqueles cabeças da ideada rebelião não conheciam nem eram conhecidos do dito advogado, apesar disso foi condenado em dez anos de degredo para o Reino de Angola e na confiscação de todos os seus bens para a Real Coroa de Sua Majestade Fidelíssima com o fundamento que se desse notícia aos Magistrados do Tumulto que se intentava concitar, o poderiam estes facilmente precaver, muito embora se consigne nesta peça jurídica que o Réu não tinha prova alguma para delatar, mas também, que nem ao menos conhecia, ou sabia os nomes das pessoas que devia delatar (pág. 79 e 80).
Condenação que hoje nos espanta por afrontar o princípio in dúbio pro reo e as demais regras adjectivas hodiernas.
Condenados em degredo para a Praça de Mazagão e confisco da terça parte de todos os seus bens: António da Rocha, António de Almeida Correia, Bernardo José da Silva, Feliciano Mendes, José da Mota Ribeiro, José Carvalho, José de Sousa Melo, José Bernardo Vieira e Filipe José soldado do Regimento de Infantaria.
Condenados para um dos lugares de África e confiscação da quarta parte dos seus bens: Francisco José de Freitas, Roque da Fonseca, Domingos Henriques, António Pereira, Manuel Martins o Matula, Luís Pereira da Mota, Agostinho Álvares Pereira, António de Sousa Moreira sapateiro, João Ferreira que ambos foram os últimos misteres ou procuradores do povo da cidade do Porto, Domingos da Costa ouvidor de Vila Nova de Gaia, Amaro da Silva, José Pinto Ferreira, João da Silva Rodrigues, João Pinto de Moura, Leandro Cardoso, Manuel Carvalho de Eça, Manuel Pinto Ramos filho de Manuel Pinto sargento de granadeiros de uma Companhia do Regimento da cidade do Porto, Manuel José da Silva, Pedro José arrieiro, Manuel Monteiro Braga, Manuel José chamado o Torto dos matadouros e Manuel Fernandes da Trindade sapateiro.
Condenadas em degredo para Castro Marim e confiscação de parte dos seus bens: Custódia do Sacramento, Josefa Maria mulher de José Rodrigues, Mariana Ferreira, Benta Francisca, Helena Bernarda, Josefa Maria a Coimbra, Maria de Beça, Maria Quitéria enjeitada, Josefa da Silva mulher do infame juiz do povo (sic); em degredo para fora da comarca Pedro Correia alfaiate, Mariana Joaquina chamada a carinha de meio tostão, Custódio Martins, Jácome Ferraz, Manuel Pereira da Ermida, Manuel Pereira Canelas, António Carvalho, António Leite Teixeira, Bernardo do Gando, Basílio Cardoso, Bento de Oliveira, Custódia Maria viúva, Domingos Francisco açafateiro, Domingos António, Joaquim Barbosa, José dos Santos, Inácio Pereira, João de Sousa alfaiate, Mariana Pinto louceira, Sebastiana de Jesus, Manuel Teixeira do Bonjardim, Manuel Rodrigues Pereira, José da Fonseca, Francisca Teresa mulher de Inácio Pereira, Pedro Mendes, Manuel da Silva Maia, Custódio Gonçalves fuseiro, Manuel Gonçalves, vendeiro, Francisco João pasteleiro, Tomé Francisco e José António criado de Diogo Wood.
Em penas pecuniárias e seis meses de prisão foram condenados: António Gomes de Pinho e seu sócio Manuel Leite, António Gomes de Sá e seu sócio Francisco da Costa, António Gomes da Costa, alferes Garcia José de Resende, Manuel dos Santos de Carvalho, José Caetano Ferreira, Manuel Tomé de Pinho, António Gonçalves vendeiro, António Pereira morador ao Padrão das Almas, Caetano de Sousa Teixeira, Eufêmia Maria, Rafael Dias, António Pinto e João Pinto, ambos de S. João da Madeira, António de Araújo da Terra da Feira, José Pinto de Andrade, Francisco Peixoto Salgado, Manuel Ferreira, António da Costa, Domingos Gomes Aranha, João de Pinho, Domingos Ferreira Brandão, João Henriques, de Lobão, Manuel Marques Pinheiro, João Francisco, Marcos José de Campos, Manuel de Sousa, Teresa Gomes, Clara da Silva, Maria Teresa, Maria Soares, Antónia Maria mulher de José de Sequeira, José Pinto dos Santos, Caetano Soares, Lourenço Fernandes, Manuel de Oliveira Guimarães, José Ferreira e Luís de Sousa ambos moradores na Rua de Trás, Luis Baptista alquilador, Manuel José Álvares vendeiro, Amaro da Costa, José Ferreira morador na Rua das Taipas, Manuel do Couto, vendeiro da Calçada da Teresa, José da Cruz Forte, António José da Armada da Calçada da Relação Velha, António Moreira Montenegro, Domingos Soares da Rua Chã, Caetano de Figueiredo, Manuel José Ramalho, João de Azevedo Baralha, Manuel Pereira Álvares, Manuel Pinto Nunes, José António da Rua da Reboleira, Manuel da Silva morador nas Hortas, Domingos Gonçalves Peres, Manuel Pinto morador no Poço das Patas, Domingos Fragueiro, Teresa Josefa, de Bragança, Diogo Félix e Diogo José soldado do Regimento de Infantaria.
Os réus José Fernandes o Missola, João Baptista escravo, Manuel José, Pedro da Costa, António Pinto, João da Costa Neves e Joaquim José da Rocha, foram os que tocaram a rebate os sinos da Sé e da Misericórdia, atendendo porém, serem impúberes, foram condenados somente a assistir e ver as execuções dos condenados à morte, e dando três voltas à roda da forca, na retirada para a cadeia lhes serão dadas em cada um, uma dúzia de palmatoadas pelo Guarda das mesmas cadeias
[7].
Na mesma pena foram condenados António Caetano Moreira filho de Caetano Moreira, que lavrou o papel sedicioso, António José Fernandes, Inácio Ferreira escravo de Luís José, e Francisco da Rosa que levaram as bandeirinhas entre os rebeldes, que serão açoutados, e Manuel José de Almeida filho do Lúcio, António de Oliveira, António José escravo de Manuel Rodrigues e António escravo de João Pires; Brás da Silva escravo de João Ribeiro vendeiro, e Paulo José escravo de Jácome Luis o Cego.
Ao que se vê, as severas condenações foram proferidas por justiceiros, que não juizes.


Notas:
[1] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ministério do Reino, maço 630.
[2] Ano 1, 1996, nº 1, pág. 71.
[3] Sentença da Alçada, edição Porto 1758, págs. 14 e 15.
[4] Página 107 do já mencionado livro Sentença da Alçada.
[5] Arquivo Histórico Municipal do Porto, cota da acta camarária de 19-4-1757: A-PUB-0084 fls. 157, 157 verso e 158, sendo esta acta mostrada nas fotos nºs 2 a 4.
[6] Sentença da Alçada, págs. 37 e 38.
[7] Pág. 87 do livro já mencionado Sentença da Alçada.








domingo, 29 de junho de 2008

LUIS BELEZA DE ANDRADE E O MOTIM DE 1757 - III

Foto nº 1
Planta do Porto, vendo-se as ruas citadas no texto,
do itinerário dos amotinados, em 23-2-1757

Não eram cumpridos cinco meses após a instituição da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 10-9-1756, quando eclodiu na cidade do Porto uma revolta popular contra a Companhia que o romancista histórico Arnaldo Gama memorou em Um Motim Há Cem Anos. Serviu também de tema na dissertação de licenciatura de Fernando de Oliveira, na antiga Faculdade de Letras da Universidade do Porto, publicada sob o título O Motim Popular de 1757.

Camilo Castelo Branco relata o acontecimento em Como Deus Castiga – Crónica Portuense[1], mas despreocupado com a exactidão dos factos, na irreprimível expansão da sua imaginação criadora. No decorrer da reconstituição do motim, vão-se comentando as apontadas versões[2].

Tudo aconteceu na manhã de quarta-feira de Cinzas, dia 23 de Fevereiro de 1757. Nas igrejas cumpria-se a liturgia da penitência e à tarde, como de costume, saía a procissão de S. Francisco. Gente dos arredores veio à cidade.
Camilo, na obra citada, erra ao escrever que a procissão de Cinza recolhia pela uma hora e três quarto, quando os sinos da Catedral e da Misericórdia picaram a rebate, pois a verdade histórica é que a procissão saíu da Igreja de S. Francisco às quatro horas da tarde depois de acalmada a cidade. O acórdão proferido em Relação pelos juízes da Alçada em 12-10-1757, publicado em livro no ano de 1758, sob o título Sentença da Alçada que El-Rei Nosso Senhor mandou conhecer da Rebellião na cidade do Porto em 1757, e da qual Sua Magestade Fidelíssima nomeou presidente João Pacheco Pereira de Vasconcelos «…» refere expressamente que os vendeiros se juntaram na manhã do dia 23 de Fevereiro
[3]


Foto nº 2
Livro editado em 1758 com a sentença da Alçada

Também, este livro publica a final, sob o título «Colecção», algumas cartas régias sobre a comissão da mesma Alçada. A primeira carta, de 28-2-1757, dirigida ao presidente da Alçada, o Desembargador João Pacheco Pereira de Vasconcelos, começa desta forma, depois do vocativo: «Eu El-Rei vos envio muito saudar: Sendo-me presente, que na manhã do dia vinte e três do corrente mês de Fevereiro sucedeu na cidade do Porto…» (pág. 95).
Arnaldo Gama, sempre escrupuloso, também indica as 10 horas e meia da manhã para o começo da rebelião[4].
O local da concentração dos amotinados foi na Porta do Olival, à Cordoaria. A sentença o confirma: «Mostra-se mais, que José Rodrigues de alcunha o Grande, João Francisco chamado o Mourão, e António de Sousa de alcunha o Negres ou o Negro, Soldado do Regimento de Infantaria da Guarnição desta Cidade, foram dos principais Amotinadores do Povo; de tal sorte que o dito Soldado, sendo persuadido pelo Réu António de Sequeira Teixeira a ir ao Tumulto, foi dos primeiros, que se acharam na Porta do Olival, aonde ele principiou» (pág. 35, ver também pág. 42).
As mulheres que faziam parte daquele grupo principiaram, em altos gritos, «as vozes sediciosas de Ah que de Povo, Viva o Povo, e morra a Companhia» e para concitarem todo o povo da cidade, os amotinadores planearam mandar tocar a rebate os sinos da Igreja da Misericórdia e da Sé Catedral, logo que principiasse o tumulto, o que veio a acontecer.
Continua a descrição no relatório da sentença: «Mostra-se mais que os Amotinadores para melhor concitarem a Plebe, e fazerem mais pública e formal a sua manifesta rebelião, determinaram que alguns rapazes levassem umas bandeirinhas encarnadas, com ramos de oliveira, para o Povo as seguir» (págs. 53 e 54).
Desta forma, os amotinados foram pela Rua de S. Bento, desceram as Escadas da Esnoga e tomaram a Rua de Belomonte a caminho do Largo de S. Domingos. Levavam o propósito previamente combinado, de se dirigirem à casa do juiz do povo, José Fernandes da Silva por alcunha o Lisboa, um alfaiate e taberneiro que morava defronte do chafariz, interpelando-o para que tomasse a direcção do protesto.
Camilo cometeu um erro palmar neste ponto. Afirma que José Ferreira da Silva, o tal juiz do povo, morava à entrada da Rua do Loureiro, para quem sai da Rua Chã: Ao toque de rebate, ergueu-se medonho alarido na Rua Chã, à entrada da Rua do Loureiro, onde morava o Juiz do Povo, José Ferreira da Silva, justamente na casa onde hoje está aberta uma loja de barbeiro (pág. 253).
Ora, como já foi dito na primeira parte deste trabalho, quem morava na primeira casa da Rua do Loureiro, do lado esquerdo no sentido de quem desce, e que actualmente tem os números de polícia 166-168, depois da última casa da Rua Chã - esta tem os números 133-137 -, era o Dr. Luís Beleza de Andrade (ver fotografia nº 3).

Foto nº 3
Casa da Rua do Loureiro, n.os 166-168 (ao fundo da Rua Chã),
depois de recuperada onde morava o Dr. Luis Beleza de Andrade

Desde o dealbar do século XVI, na parte central do Largo de S. Domingos existia o tal chafariz, que foi demolido em 1845. Em sua substituição, construiu-se uma fonte adossada à parede de um edifício que ficava defronte da fachada do Convento de S. Domingos, ainda hoje existente, mandado construir pelo conselheiro Domingos de Faria.
Posteriormente o prédio ficou a pertencer a Manuel Francisco de Araújo que fundou em 1829, a Papelaria Araújo & Sobrinho. Esta sociedade comercial, para alargar uma das montras, retirou o belo fontenário, que contém a escultura de Santa Catarina e acautelou-o, colocando-o no interior do edifício (ver fotografias nº 4 e 5).


Foto nº 4
Fonte com a imagem de Santa Catarina, agora no interior da Papelaria Araújo & Sobrinhos

Foto nº 5
Edifício da Papelaria Araújo & Sobrinhos no Largo de S. Domingos,
ainda com a fonte adossada à parede

Mas volto ao encalço dos amotinados. Tudo se tinha combinado previamente no sentido de que o juiz do povo, o tal Lisboa, pretextaria o estado de doente por ter tomado uma purga e que fora violentado ao tumulto (sentença, pág. 23), de forma a não cair nas malhas da justiça inculpado por comparticipação no motim.
A multidão reclamava a sua presença, e escutado pretexto, rolou-se ameaçadora contra a porta da casa pois o povo não sabia a prévia combinação com os dirigentes do movimento. Ele apareceu e continuou a invocar a sua doença: Viva o povo! Eu sou do povo! Mas, senhores, eu estou muito mal…estou muito doente. Tomei uma purga… não posso ter-me em pé. Assim reconstrói Arnaldo Gama os seus dizeres.
Os amotinados José Rodrigues, João Francisco e o soldado José Pinto de Azevedo foram à vizinha Rua Nova, buscar uma cadeirinha de mãos em que, segundo o plano ajustado, devia nela ser transportado o juiz do povo (como consta do relatório da sentença (pág. 36 - § XVI), a fim de ser o cabecel da revolta.
O arruamento aludido, hoje denominado Rua do Infante D. Henrique, na altura era conhecido pelo nome de Rua Nova, que fora mandada rasgar por D. João I e a que o monarca depois chamou «a minha Rua Formosa». Com a construção da Feitoria inglesa, iniciada em 1785, passou a designar-se Rua Nova dos Ingleses e recentemente passou a ter o nome de Rua do Infante D. Henrique a memorar-lhe o nascimento nas imediações, de harmonia com a tradição.
Chegada a cadeirinha, conta Arnaldo Gama: O juiz meteu-se na cadeirinha, e a multidão começou então a mover-se pela rua das Flores acima.
Não me dispenso de transcrever a passagem, genialmente escrita com a pena do grande aflito de Seide sobre o mesmo tema: O povo apelidava pelo seu juiz, o qual, chegado o momento de tomar a dianteira do motim, de tamanho terror se gelara, que simulou uma doença, mostrando, para que o deixassem, a garrafa do purgante que havia de tomar naquele dia, se o não atacasse a tosse violenta. A plebe, menosprezando os achaques gástricos do seu covarde caudilho, mandou buscar à Rua Nova uma cadeirinha, e forçou o enfermo a encurralar-se naquele veículo, aliás irrisório para um representante do povo, um tribuno, uma relíquia dos anciãos municípios, que devia arengar ao chanceler, ao provedor da Companhia, ao regedor das Justiças, e ao próprio rei, sendo necessário, em prol do seu povo[5].
Nas igrejas da Misericórdia e da Sé os sinos continuavam a tocar a rebate. A turba adensava e comburida pelos insistentes pregões ganhou o Largo de S. Bento, onde sediava o convento das monjas beneditinas de Ave-Maria (no dealbar do século XX, foi demolido este belo edifício para, no seu local, ser edificada a estação de S. Bento cujo edifício é do risco do arquitecto Marques da Silva), e daí subiu a íngreme Rua do Loureiro que o confrontava pelo lado sul.
Assomada a Rua Chã, a multidão já calculada em 5.000 pessoas, dirigiu-se à casa de morada do desembargador Bernardo Duarte de Figueiredo, corregedor do crime e chanceler das justiças, insultando, e violentando o dito Ministro com atrevidas vozes, e ameaças, para que desse por extinta a Companhia, como consta da sentença, o que ele formalizou assinando os documentos, coacto, e violentando-o a que os mandasse afixar e publicar a som de caixas, e que nomeasse para o caso as ausências do Juiz do Povo actual, Joseph Fernandes da Silva, de alcunha o Lisboa, outro também da sua facção, chamado Thomaz Pinto, determinando, que se fechassem as Tavernas da mesma Companhia, e se devassassem os seus Armazéns (pág. 7 da sentença - § 1º).
A referida casa de morada do desembargador Bernardo Duarte de Figueiredo fica sobre o arco da antiga Viela da Cadeia, actualmente designada Travessa da Rua Chã, e tem na dita Rua Chã o número de polícia 92 (ver fotografia nº 6).


Foto nº 6
Casa da Rua Chã nº 90 onde morava o Corregedor Dr. Bernardo Duarte de Figueiredo

A mole imensa, galvanizada pelo êxito, propôs-se continuar a cumprir o programa preestabelecido de queimar a documentação da instituição e ajustar contas com o provedor Luís Beleza de Andrade que morava a escassos metros do corregedor da justiça, ao fundo da Rua Chã, ou mais precisamente, na última casa da Rua do Loureiro, do lado esquerdo quem desce, junto da qual os amotinados ainda há pouco tinham passado quando subiram este arruamento.
Para aí se volveram os amotinados que apedrejaram as janelas e fizeram menção de arrombar as portas. De dentro, um criado e outro homem que aí casualmente se encontrava, dispararam dois tiros de bacamarte, contra o povo. Houve feridos. O relatório da sentença alude ao réu ausente Manuel Fernandes da Trindade, sapateiro, nestes termos: se prova com evidência o estar entre eles à porta do Provedor da Companhia, por ficar mal ferido de um de dois tiros, que em sua defesa deram de casa do dito Provedor «...» (pág. 49).
A multidão, exasperada, rebentou as portas, penetrou na casa, despedaçou o rico mobiliário, mesas, espelhos, tremós, adornos preciosos e até vários títulos de propriedades, e revolveu as alamedas do pequeno jardim. Uma tal Gertrudes Quitéria dava o ponto à grita persecutória:
- Morra tudo! Queime-se este Beleza! Deite-se fogo às casas, e queime-se tudo.
Maria Pinta foi das primeiras que subiram a escada do mesmo Provedor do que depois se gabara, chamando-lhe publicamente ladrão, e afirmando, que sentira muito não o achar em casa para o martirizar pelas suas próprias mãos, conforme se lê no relatório da decisão judicial (pág. 43 e 44).
Da parte da multidão também se dispararam tiros. Conta o genealogista Felgueiras Gayo[6] que um tal João de Araújo, natural de Lamego, fora alfaiate e depois camurceiro. Decaindo de bens foi escudeiro de Luís Beleza do Porto e de sua mulher Joana Tomásia, e acrescentou: depois entrou a negociar em seda em rama com alguns dinheiros que lhe deram para se compor com quem lhe tinha dado um tiro que ia destinado para o Amo na ocasião do levante do Porto.
Entretanto, os seus moradores tinham fugido pelas traseiras que davam para o Corpo da Guarda.
Contíguos à casa de morada do provedor ficavam os escritórios da Companhia que a turba assaltou, destruindo e lançando à rua vários documentos e livros que encontraram.
A sentença relato o evento deste feitio: mas continuando ainda em acumular absurdos a absurdos, forão assaltar as cazas da dita Companhia, e outras immediatas do Provedor da Junta da sua Administração, Luiz Belleza de Andrade, quebrando-lhe as janellas às pedradas, arrombando as portas, e despedaçando, e rasgando, depois de se apoderarem das ditas cazas, não só os moveis, e alfayas, com que ellas se ornavão mas até as Leys firmadas pela Real Mão de Sua Magestade Fidelíssima, e os mais papeis, e livros da referida Companhia, que descançava segura à sombra da immediata protecção do mesmo Senhor, pretendendo os Rebeldes arruinar também por este modo o cabedal dos Accionistas interessados na dita Companhia Geral (pág. 7).
Arnaldo Gama apresenta a sua versão:
Luis Beleza de Andrade tinha já mandado fechar e trancar as portas. A populaça, mal chegou defronte da casa dele, soltou um grito medonho, e assaltou-lhe à pedrada as janelas.
- Abaixo a Companhia! Morra o provedor dos ladrões! Viva o povo! Deitem-lhe fogo às casas! Queime-se esta Beleza!
Assim exclamava a turba, apedrejando as janelas e arremessando-se de quando em quando, de encontro às rijas portas do provedor, que rangiam mas que se mostravam que não cederiam facilmente. A resistência excitou cada vez mais os ânimos. Já não havia um só vidro inteiro nas janelas. A populaça raivava furiosa, atroando os ares com espantoso alarido. Alguns amotinados já tinham chegado carregados de carqueja e lenha, e pediam em altos gritos que viesse lume para se incendiar a casa do chefe dos salteadores da Companhia «…» (cfr. local citado pág. 264).

Gama estranhamente, coloca a casa do provedor à entrada da Rua da Bainharia, como houve já ocasião de referir na I parte deste estudo. Isto queria dizer que a multidão depois da casa do corregedor continuou pela Rua Chã, rumo ao Arco da Vandoma, a sul, para depois descer ou pelos Pelames ou por S. Sebastião até à Bainharia. Porém, nunca Luis Beleza aí morou. Todos os documentos o sediam ao fundo da Rua Chã ou já na Rua do Loureiro, que tudo se reconduz à mesma referência, como foi demonstrado à saciedade na I parte deste estudo.
Foi esta a razão que me levou a escrever que fazia sentido os manifestantes prosseguirem o trajecto para a Bainharia, e não voltar a trás, por onde tinham passado pouco antes e deixado incólume a casa do provedor, sem tomar em conta, no entanto, que o programa previamente assente foi o de obter-se a extinção da Companhia pela mão do corregedor Bernardo Duarte de Figueiredo, para depois eliminarem-se os documentos e responsabilizar-se, através de molestação física – a tal justiça popular - os dirigentes do organismo nocivo.
Mas ainda piorou a versão Camilo Castelo Branco ao escrever que o tumulto, depois de deixar a casa de Bernardo Duarte de Figueiredo, ondeou para a Rua Nova (ou seja, pela actual Rua do Infante D. Henrique), e parou à porta de Luis Beleza de Andrade.
Vai ao ponto de escrever que a sorte do provedor seria igual à dos deputados da Companhia, se a noite não interviesse e com ela a letargia das fúrias já prostradas pelo excesso nuns e entregues nos outros (pág. 256).
É ocioso perder mais tempo com a análise das inexactidões que conflituam com a sentença da Alçada.
A sorte de Luis Beleza e da família foi fugirem pelas traseiras da casa para o Corpo da Guarda.
A intervenção de uma força da Guarda da Infantaria pôs termo aos desacatos depois de ser apedrejada pelos amotinados. Lê-se na sentença: Resistindo e insultando à Guarda de Infantaria, que acudiu a sossegar os ditos Rebeldes, os quais se atreveram a apedrejar, não só os Soldados e Oficiais de Guerra, mas também ao Desembargador Fernando Leite Lobo, Corregedor do Cível desta Relação «…».
Os desacatos prosseguiram nos dias seguintes pelos autores dos factos relatados não só atrevidamente amotinados, em comprar os vinhos da referida Companhia pelos preços que lhe pareceu arbitrar, e em vendê-los nas Tabernas, que quiseram abrir em desprezo do Privilégio exclusivo, que Sua Majestade Fidelíssima havia concedido à mesma Companhia «…» (sentença pág. 8).
(continua)
ver também sobre a família Beleza de Andrade: o site:

NOTAS:
[1] A sua publicação em Obras Completas de Camilo Castelo Branco, vol. IX, pág. 235 a 257, edição Lello & Irmão – Editores Porto, 1988, sob a direcção do Prof. Justino Mendes de Almeida, que agora seguimos nos comentários do texto.
[2] Sobre o tema, publiquei o estudo «O Dr. Luís Beleza de Andrade e a Fundação da Companhia Velha» no semanário A Voz de Trás-os-Montes no ano XLII, n.os 2067 a 2074, respectivamente de 22-6-1989 a 31-8-1989.
[3] Livro impresso na Oficina do Capitão Manuel Pedroso Coimbra, no Porto, ano 1758, pág. 51.
[4] Um Motim há Cem Anos, edição da Livraria Tavares Martins, Porto, 1935, pág. 251.
[5] Camilo, lugar citado, pág. 253.
[6] No seu Nobiliário, em título Barretos Velhos de Viana do Minho, no § 79 N. 14, edição ano 1989, II vol., pág. 509.














terça-feira, 24 de junho de 2008

LUIS BELEZA DE ANDRADE - II

http://ruidesaeguerra.webs.comsessão/ da Câmara do Porto de 18-9-1756
com a posse de Luis Beleza de Andrade como vereador
(contém a assinatura do empossado)



No último quartel do século XVII a balança comercial portuguesa ficou altamente deficitária no intercâmbio mercantil com a nossa aliada Inglaterra. Os Ingleses deixaram de nos comprar os produtos coloniais, tabaco e açúcar depois de empreenderem, com êxito, no decurso do século XVII, a plantação do tabaco na Virgínia e do açúcar nas Índias Ocidentais. No entanto, Portugal continuava a importar da Inglaterra os bens que carecia, como os têxteis, ferragens e produtos alimentares.
A crise comercial adveniente gerou os naturais mecanismos de defesa e então recorreu-se à exportação do vinho duriense para pagar as nossas importações.

Não era, no entanto, o vinho fino que hoje conhecemos. Só no princípio do século XVIII o vinho começou a ser reforçado com aguardente para suportar a viagem, mas era logo consumido depois de chegar ao destino. Mais tarde, o envelhecimento em cascos transformou-o em vinho de sobremesa, doce e encorpado.
O Tratado de Methuen, assinado em 1703, favoreceu a exportação do vinho, permitindo a entrada na Inglaterra dos nossos vinhos com a redução de um terço das taxas aduaneiras incidentes sobre os vinhos franceses, em troca dos produtos manufacturados ingleses.
Desta forma, à medida que se incrementava o comércio com a Inglaterra, o escoamento da produção vinícola duriense era garantido. Os vinhos eram, por natureza, muito generosos e conservavam-se firmes durante muitos anos. A sua cotação subiu. A pipa que valia 8 a 12 mil reis chegou a ser transaccionada a 60 e até, excepcionalmente, 96 mil reis.
Foi esta a causa principal de todos os males sobrevindos. O plantio da vinha desbordou para zonas impróprias e para outras províncias.
Os ingleses, que mantinham todo este comércio, trabalhavam à comissão das casas cujas sedes ficavam no Reino Unido. As casas inglesas do Porto multiplicavam os seus lucros razão por que em breve aumentaram, atingindo o número de 32. Foram estas casas inglesas que constituíram a Feitoria inglesa na cidade do Porto.
Para aumentarem os lucros recorreram à adição de vinhos inferiores e às mais singulares confeições. E os lavradores, também desejosos de maiores lucros aumentaram a produção. Os campos que davam pão, os outeiros cobertos de olival, as encostas dos soutos transformaram-se em vinhedos.
Um anónimo francês, que visitara o nosso país por essa época, descreveu, com manifesto exagero, que o Norte de Portugal era uma «vinha contínua» pelo «desejo idiota de plantar vinha que varreu as províncias do Norte»
[1]
Sobreveio a crise da fartura. O vinho produzido em ambas as costas do Rio Douro para exportação sofria também forte concorrência dos de inferior qualidade que recebiam a cor, o sabor e o corpo pelo adicionamento da baga de sabugueiro, açúcar, tibornas, aguardente de borras, canela, pimenta e cravo, sal, noz moscada, caparrosa, açúcar, campeche e outros produtos.
O excesso da oferta e a adulteração teve gravíssimas consequências. Na alfândega de Londres chegou-se a salgar e a destruir lotes de vinhos portugueses considerados nocivos à saúde e venenosos.

A grande crise vinhateira ocorreu de 1750 a 1756. Escreveu mais tarde o Marquês de Pombal que os lavradores durienses queixavam-se de que o abade de Lobrigos abandonara a sua Igreja porque os paroquianos não podiam pagar a côngrua, as casas principais achavam-se reduzidas à última pobreza, tendo vendido ou empenhado até as colheres e garfos com que comiam.
Não eram afirmações exageradas como hoje se lê em tratadistas qualificados.
Conta Luís Beleza de Andrade, em carta de 18-5-1758, dirigida a José Moreira Leal e Manuel Pereira de Faria, sindicantes da primeira Junta da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro que, um dos motivos que o levara a procurar meios «de dar sahida aos vinhos do Douro, fora porque hindo nos annos de 1753, e 1754 asistir as vindimas de meu Pay na Villa de Valdigem, ahi vira que a gente geralmente hia morrendo, e com tanto excesso, que se hião deminuindo muitas famílias; e indagando o motivo daquella mortandade alcancei, que quazi tudo procedia da pobreza, que por ser geral, nem tinhão com que se curassem, nem quem os podesse socorrer, sendo a doença de que morrião, humas maleitas das quaes escapavam todos aquelles que tinhão dês ou doze tostões com que comprasem quina, e ter alguns dias de dietta»
[2].
Era o paludismo, a malária instalada e os povos morriam desprovidos dos dez ou doze tostões com que comprar o quinino e fazer a dieta.
Ninguém se considerava responsável.
A Feitoria Inglesa alegava que os malefícios resultavam da lota dos vinhos dos altos e ruins sítios com os da Feitoria, do pouco cuidado no lagar e do adicionamento de aguardente que os abafava na fervura.
Transmitia, por esse facto, em Setembro de 1754, instruções a todos os comissários para avisarem os lavradores da forma de fazer o vinho, e que também os comissários «sabendo da vindima daqueles que não tiverem emenda, nos dêm parte, para fugirmos da sua porta, pois estamos na resolução de não comprar a quem não observar o referido».
Contrapunham os «Comissários Veteranos de sima do Douro» que a causa dessa decadência devia-se à Feitoria. Explicavam, numa curiosa e bem elaborada frase, muito citada: «Conheceram os mercadores ingleses que o vinho de Feitoria sobre bom tinha passado ao estado de melhor; quiseram que excedesse ainda mais os limites que lhe facultou a natureza, e que sendo bebida fosse um fogo potável nos espíritos, uma pólvora incendida no queimar, uma tinta de escrever na cor, um Brasil na doçura e uma India no aromático».

Para o efeito, começaram a lançar-lhe aguardente de prova na fervura, e bago de sabugueiro, ou folheco de uva preta para a cor.
Ao tempo, Manuel Roiz Braga, reputado provador de vinhos, em carta ao Padre João de Mansilha, escrevia: «Haverá coisa de 20 anos os ingleses desta cidade não eram mercadores, eram comissários dos vinhos» oferecendo-os «aos seus correspondentes por preço certo e por pipa, posto a bordo dos Navios aqui, neste Rio Douro». Faziam as suas misturas de vinhos inferiores com os bons «para avançarem maior lucro».

Por essa altura um comerciante espanhol oriundo da Biscaia, radicado no Porto, Dom Bartolomeu Pancorbo, diligenciava constituir uma sociedade com o objectivo de comercializar os vinhos através da exportação. Estava nos seus projectos a abertura de mercados por toda a Europa, associando ao empreendimento o próprio filho, um gentil homem do Ducado de Lorena e outras individualidades europeias de grande influência.

Não obteve êxito os seus intentos de negócio por carência de financiamento. Retirou-se para Lisboa e faleceu em 13 de Dezembro de 1756[3].
Na já invocada carta de 1758, Luís Beleza recorda o quadro de miséria que lhe foi dado ver na vila de Valdigem, pela altura das vindimas nos anos de 1753 e 1754. Tocado por esta situação e considerando inútil a despesa feita no aumento das vinhas do pai, entrou «a procurar todos os modos de dar saída aos vinhos».
Minudencia as acções que levou a cabo.
Fez diligências junto do Governo para que fosse promulgado diploma a ordenar a observância do velho Alvará de Setembro de 1605 que limitava em 95 o número de tabernas no Porto e nos lugares circunvizinhos em distância de três léguas, para assim ter-se melhor controlo do vinho aí vendido. Logrou alcançar a respectiva provisão em Agosto de 1755. Também, decorrido um ano, o próprio Alvará instituidor da Companhia, nos § XXVIII e § XXXII consagrou esta solução.
Associou-se a quatro comerciantes para enviar à Rússia, em Setembro desse ano, como delegado Manuel Pinto Paiva, a fim de estudar esse mercado.
Por essa altura encontrou-se com o frade dominicano Padre Mestre Doutor João de Mansilha, natural de S. Miguel de Lobrigos «com quem ate ali não tinha amizade algûa, sabendo que elle era das terras do Douro, lhe comuniquei os meos pensamentos, que elle logo abrasou, e louvou».
Mas outras soluções urgiam, como ele escreve na longa carta de 18-5-1758 a José Moreira Leal e Manuel Pereira de Faria: «Entramos a procurar mais caminhos» já não de carácter privado e individual, e ao intento convoca alguns dos principais lavradores do Douro «para um conclave» em sua casa. Nessa reunião o Padre João de Mansilha esteve presente e alvitrou que o melhor sistema seria proceder-se à «demarcação das Serras», cuja sugestão agradou a todos.
Comenta Sousa Costa: «A demarcação das serras! A limitação oficial, nos pendores da Terra do Vinho, da zona privilegiada que gera os mostos de mais nobre estirpe, elemento primordial da selecção espontânea de qualidades e tipos».
A petição foi elaborada e remetida à Corte e posto viesse a informar ao governador das Juntas Bernardo Duarte de Figueiredo, este não prestou as informações solicitadas.
Na conjuntura, Luís Beleza soube que D. Bartolomeu Pancorbo, deslocava-se a Lisboa a aguardar as frotas, donde vinha o dinheiro dos seus negócios no Brasil, e pediu-lhe que falasse na Corte sobre a instante necessidade de se constituir uma companhia com o objectivo estatutário de proteger a lavoura do Douro e o correlativo comércio vinhateiro.
A diligência de Pancorbo surtiu efeito e, em breve, remetia de Lisboa a Beleza o projecto para os lavradores assinarem, pedindo-lhe de volta que o pai, o mestre de campo José Vicente de Andrade Beleza, não alugasse os armazéns para estarem prontos a receber o vinho que a projectada Real Companhia viesse a comprar. Referia-se aos armazéns já na primeira parte deste estudo aludidos, situados na Avenida Diogo Leite, em Vila Nova de Gaia hoje pertencentes a A. A. Cálem & Filho, Lª.
Continua Beleza a relatar os ulteriores passos: «Fomos para as vindimas, e lá de acordo com os mais Lavradores reformamos os arttigos e os asignamos, e depois nesta Cidade de donde os inviamos ao dito Pancorbo, o qual respondeo, que logo, logo fosse eu a Corte; e que se quizesse levar commigo ao dito Padre Doutor melhor seria; mas não podendo eu hir, e reconhecendo a minha curta inteligência pedi ao dito Padre Doutor, que quizesse ir; e lhe dei sessenta moedas da minha bolça; pois ninguém quis contribuir para as despezas».
Comenta Sousa Costa que aquele reconhecimento da curta inteligência, longe de o apoucar confere-lhe a copiosa sapiência de Salomão astuto, a esconder-se por trás da cátedra filosófica do Padre Mestre para levar a virtude ao seu vinho
[4].
Como se vê, e era também o entendimento do saudoso Eng. Moreira da Fonseca, a ideação da Companhia deveu-se a Luís Beleza.

Aliás, o próprio Padre Mansilha, que até apresentou a sugestão de «demarcação das serras» naquela reunião ou «conclave», como designou depois Luís Beleza, com os lavradores, na sua casa no Porto, sempre lhe atribuiu essa «honra e glória».
Efectivamente, lê-se em certa passagem da carta, datada de 9-10-1756, do Padre Mansilha ao provedor: «Primeiro – Porque tirou Vossa Merce a si próprio, aquela glória e honra, em que eu sempre lhe atribui – pois a Sua Excelência (referia-se a Sebastião de Carvalho e Melo) tinha sempre persuadido, que Vossa Merce fora o que primeiro falara em tal Companhia e que o Castella (alusão picante ao biscainho D. Bartolomeu Pancorbo) viera a Lisboa a diferente fim – e que Vossa Merce o persuadira a tocar na Companhia…».
Além da paternidade da ideação, os restantes membros da futura Junta concordaram que só ele suportou as despesas de procuradores, próprios e outras diligências para o estabelecimento da Companhia, «e que esta despesa perderia se a Companhia se não formasse».

A Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro recebeu a sua personalidade jurídica pelo Alvará de 10 de Setembro de 1756, formada com o capital de um milhão e duzentos mil cruzados repartido em acções de quatrocentos mil reis cada uma, e propunha-se restituir o bom nome ao vinho do Douro, garantindo a genuidade, elevar o nível de vida da região e sustentar o comércio de exportação do vinho que era um dos mais importantes do Reino.
As vantagens que da sua criação resultaram foram indiscutíveis, introduzindo o regime de demarcação que os franceses também adoptaram quase um século depois (§ XXIX dos Estatutos). Determinou-se a elaboração de um mapa e tombo geral das duas costas, setentrional e meridional do Rio Douro, no qual se demarque todo aquele território que produz os verdadeiros vinhos de carregação capazes de sair pela barra do Rio Douro, para exportação.
Medida tão restritiva para garantir a qualidade do vinho recebeu a brecha relatada pelo contemporâneo Jácome Ratton nas suas Recordações: O Padre Frei João de Mansilha, procurador geral da Companhia das Vinhas do Alto Douro, comprava por bom preço todos os vinhos da Quinta de Oeiras, da propriedade do primeiro ministro, como muito necessários, dizia ele, para lotar os da Companhia!
A administração foi confiada a um provedor, 12 deputados, um secretário e seis conselheiros. Este complexo corpo de gestão saía obrigatoriamente dos accionistas que por seu turno, deveriam ser de reconhecida competência no comércio dos vinhos e, para além disso, ao provedor e deputados exigia-se a subscrição significativa nas acções, sempre acima de dez mil cruzados (§ XLIV).
Ademais, os cargos de provedor e de deputados, para reforçar e prestigiar o poder da administração, conferiam o estatuto de nobreza a quem os ocupasse se não gozassem ainda desse status, depois de haverem exercitado por dois anos completos o respectivo mandato, com satisfação da Companhia; ficavam, também, habilitados a receber os hábitos das Ordens Militares
[5].
O Dr. Gaspar Martins Pereira, em estudo publicado em o número 1, ano 1996, da revista Douro – Estudos & Documentos, regista uma representação dos lavradores proprietários de Valdigem, Santa Marta de Penaguião, Peso da Régua e Lamego. Abundavam eles: por diversas vezes, os lavradores do Douro denunciaram o facto da Junta da Companhia ser constituída na sua quase totalidade por comerciantes e habitantes do Porto. Mas, louvando, acrescentam que justa e acertadamente pensaram os Lavradores e moradores do Porto no tempo em que pactuaram esta instituição que para o governo da administração da Companhia deviam ser administradores os Lavradores que cultivavam este género juntamente com os Negociantes que o negociava. Nesta conformidade foram nomeados pelo rei D. José I para provedor e deputados da Junta igual número de lavradores moradores no Douro - «neste País» como se referiam -, sendo o primeiro provedor residente e natural dele, Luís Beleza de Andrade, que com os deputados lavradores imediatamente se passaram a residir na cidade do Porto a dirigir a Administração; e nos três primeiros anos de duração desta primeira Junta consultaram o governo pedindo providências para aumento e felicidade da lavoura e do comércio.
Concluem os lavradores a exposição deste feitio: «Na nomeação da segunda Junta já não foi contemplado Lavrador algum morador neste Alto Douro, porque o Procurador da Companhia, naquele tempo Frei João de Mansilha, e por quem corriam todos os negócios de despachos dela, devendo informar igual número de Lavradores moradores neste Douro, o fez tanto pelo contrário que saíram todos moradores na Cidade do Porto; e para dar uma aparente satisfação ao sobredito § 2º foi nomeado Provedor Vicente de Noronha, a título de Lavrador, por ter uma Quinta neste Douro, onde nunca pelos naturais dele foi visto, nem conhecido, e por isso ignorante de todas as precisões da nossa Agricultura e dos nossos competentes interesses para promovê-los na Administração com igualdade aos do Comércio…»
[6].
Referiam-se a Vicente de Noronha Leme Cernache que, por Carta de 20-12-1760, foi nomeado provedor da Companhia em substituição de Luís Beleza de Andrade. Era proprietário da Quinta da Aveleira na freguesia de Távora.
Conta o Eng. Álvaro Moreira da Fonseca, quando estudou as demarcações pombalinas no Douro vinhateiro, que várias quintas na mesma zona de demarcação, como as Quintas da Nova Prelada em Abaças, da Fonte do Milho em Poiares, da Sendarela Velha em Vilar de Maçada e outras que não usufruíam protecções especiais, ficaram excluídas da qualidade de produtoras de vinho da feitoria, mas a Quinta da Aveleira fora incluída na zona da Feitoria, classificada para 19$200 reis a pipa. Acrescenta a comentar: «Sentimos uma anomalia, uma injustiça!».
E mais adiante: «Nós próprios, consideramos parte das encostas desta Quinta, como outras a sul e fazendo parte das Quintas de S. Pedro das Águias e das Heredias – limite extremo da Região Produtora de vinhos generosos no vale de Távora – como dignas dessa distinção, mas não em 1761, quando tantas outras vinhas bem mais dignas de tal classificação ficaram taxadas para 15$000 e até 10$500 reis! A Quinta de Roriz, bem superior à Aveleira, e tanto que ouvia o ranger da espadela por beber ao Rio Douro, não obteve mais de 15$000 reis, e todas as encostas circundantes não iam além de 10$500, facto que consideramos outra injustiça! Resoluções próprias dos homens
[7].
Já no primeiro quartel do século XIX ainda se criticava a admissão na feitoria da quinta do Salter (era a referida quinta da Aveleira) «só porque era homem de grande poder e de grande influência na corte, a qual quinta é situada em terreno balseiro, e produz um vinho não só de inferior mas de péssima qualidade»
[8].

Ainda antes da publicação do Alvará de criação da Companhia já eram elaboradas listas preliminares para os seus órgãos dirigentes, e em todas elas figurava como provedor perpétuo Luís Beleza de Andrade que produzia no Douro 200 pipas de vinho, ou pelo menos entrava com elas para a Companhia, e intendente geral da Companhia para assistir na Corte o Dr. Bartolomeu Pancorbo de Ayala e Guerra, e intendente administrador do Brasil Jerónimo Beleza de Andrade Rua, que era irmão de Luís Beleza.
Na lista que veio a ser sancionada oficialmente na Instituição da Companhia, de 31 de Agosto de 1756, ficou como provedor Luís Beleza de Andrade, e não se criou o cargo de intendente geral da Companhia para assistir na Corte, razão por que Bartolomeu Pancorbo não exercitou nenhum cargo e ainda nesse ano faleceu, nem o de intendente administrador do Brasil pelo que Jerónimo Beleza não exercitou também qualquer cargo.

Na sessão do Senado da Câmara do Porto de 18 de Setembro de 1756 o Dr. Juiz de Fora apresentou uma carta de Sua Majestade em que lhe ordenava que desse posse e juramento de vereador a Luís Beleza de Andrade para servir o presente ano o dito cargo, e sendo por ele mandado chamar se lhe deferiu o juramento dos Santos Evangelhos debaixo do coal se lhe encarregou que bem servisse a dita ocupasam (ver a imagem da 1ª folha da acta camarária, que encabeça este estudo).
De seguida à prática da cerimónia da posse, ainda nessa sessão, foi deliberado lançar pregão para que toda a gente deitasse fogo, pusesse luminárias nas noites de 18, 19 e 20 desse mês de Setembro para se mostrar o contentamento pela mercê que Sua Majestade fez de confirmar a Companhia dos Vinhos desta cidade de que resulta os interesses nestas Províncias, e que no dia 21 se mandasse cantar o Te Deum Laudamus em acção de graças pela vida e saúde de Sua Majestade (ver a única imagem acima publicada).
Mas o Cabido recusou celebrar o Te Deum. Os interesses da Companhia conflituavam com os da Mitra do Porto que era possuidora no Douro, entre outros bens, de dois terços da renda da Régua. Desta forma a Companhia teve que celebrar o acto religioso na Igreja de Nossa Senhora da Graça e Colégio dos Meninos Órfãos que estavam sob a sua tutela administrativa
[9].

Apenas decorridos vinte dias, em 2 de Outubro, o presidente da Junta Administrativa do novel organismo, Dr. Luís Beleza de Andrade, dava conta ao dominicano Frei João de Mansilha, procurador da Companhia junto da Corte, do regozijo manifestado pelos lavradores naquele imenso cadinho que é o da região duriense, desta forma, cuja redacção se actualiza:
Como se ofereceu este próprio quero dar parte a V. Reverendíssima que hoje recebo do Douro pelo correio que primeiramente são as notícias do contentamento e alvoroço que todas aquelas terras tiveram com a certeza do favor, que Deus lhe fez, aonde vivíssimas e públicas mostras da sua alegria não só com gerais luminárias e repiques, folias, encamizadas passados todos de contentes a loucos com o excesso do gosto mas ainda os que pela sua pobreza não tiveram meios de pôr luminárias fizeram maiores demonstrações com ardentes fogueiras com que alumiaram todas aquelas montanhas, e eu achei graça a esta resolução e demonstração dos pobres.
Esta noticiada explosão de júbilo revela a funda crise da região vinhateira duriense, o estado calamitoso a que chegara, e exprime a esperança depositada pelos lavradores no recém-criado organismo.

Notas:
[1] Susan Schneider in O Marquês de Pombal e o Vinho do Porto, pág. 42, edição A Regra do Jogo, Lisboa 1980.
[2] Torre do Tombo, Ministério do Reino, maço 630.
[3] Na carta de do Padre Mestre Frei João de Mansilha para Manuel Rodrigues Braga, datada de Lisboa de 14-12-1756, dá a notícia daquele óbito: Foi Deus Servido levar Pancorbo pelas cinco horas e meia da manhã do dia treze de Dezembro com os Sacramentos e mui conforme com as disposições de Deus.
[4] Figuras e Factos Alto-Durienses, in Anais do Instituto do Vinho do Porto, 1953, pág. 39.
[5] Cfr. também Dr. António M. de Barros Cardoso na revista Douro – Estudos & Documentos, ano 1, 1996, nº 1, pág. 67 e seguintes.
[6] ibid págs. 183 e 184 nota 12.
[7] In Anais do Instituto do Vinho do Porto, 1951, 2º volume, pág. 236 a 238.
[8] Ibidem pág. 239.
[9] Cfr. O Vinho do Porto na Época dos Almadas, do Eng. Álvaro Moreira da Fonseca, pág. 27 e 28.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Dr.LUIS BELEZA DE ANDRADE - IMPULSIONADOR DA FUNDAÇÃO DA COMPANHIA GERAL DA AGRICULTURA DAS VINHAS DO ALTO DOURO E SEU PRIMEIRO PROVEDOR

1
Casa dos Belezas na Escada do Monte dos Judeus



2
Casa da Rua do Loureiro nº 168, conhecida por Casa da Rua Chã
do Mestre de Campo José Vicente de Andrade Beleza



3
Portão da Quinta da Boavista ou da Beleza
na Rua do Choupelo, em Gaia
(guardado na Casa Museu Teixeira Lopes)


4
Brasão com as armas Beleza, Andrade, Pereira,Moutinho
no portão da Quinta da Beleza ou da Boavista




5
Letra e duas assinaturas
de José Vicente de Andrade Beleza






6
Armazéns construidos
por José Vicente de Andrade Beleza,
em Vila Nova de Gaia





7
Brasão com as armas Beleza e Andrade
nos Armazéns de Vila Nova de Gaia





8
Pauta de roupa feita pelas irmãs
Ana e Bernarda Beleza de Andrade
freiras no Convento de Arouca




9
Casa da Rua do Loureiro nº 168
do Dr. Luis Beleza de Andrade

* * *

No tema proposto ao nosso estudo, revelado na síntese do título, torna-se mister colocar uma questão prévia que terá importância no culminar da sublevação ocorrida no Porto naquela quarta-feira de cinzas de 23 de Fevereiro de 1757 – qual seja a precisa localização da moradia do Mestre de Campo José Vicente de Andrade Beleza e família, portanto do seu filho Dr. Luís Beleza de Andrade.
Sobre o caso correm três versões, mas duas não conflituam e antes roboram a substância da realidade.
Na versão reportada por Arnaldo Gama no seu livro UM MOTIM HÁ CEM ANOS (edição Livraria Tavares Martins, 1935, pág. 263), o provedor Luís Beleza vivia logo à entrada da Rua da Bainharia, nas casas onde também estava o escritório da administração da Companhia. Diga-se desde já, para a excluir in limine, que não tem alicerce que a alçapreme a realidade. Sem embargo será a que mais se coaduna com a trajectória da multidão amotinada. Na segunda parte explicarei o sugestivo paradoxo.
Impõe-se desde já uma advertência para exaltar a probidade de Arnaldo Gama. Era escritor de romances históricos muito escrupuloso na reconstituição dos factos, a ponto de instruir a final, a tessitura dos seus romances, com a publicação dos documentos probatórios – as tais Provas como chamava D. António Caetano de Sousa na sua monumental obra HISTÓRIA GENEALÓGICA DA CASA REAL PORTUGUESA.
Certo que nos romances criava tipos e descrevia os factos de parelha com os veros comparsas da história e com a realidade ocorrida que ele, com grande mestria e de forma aliciante, caldeava no entrecho.
O grande investigador Dr. Artur de Magalhães Bastos, ao julgá-lo pela obra produzida, e a propósito da localização controvertida das emparedadas do Porto, adverte que Arnaldo Gama revelava probidade mental e escrúpulo com que escrevendo romances, procurava basear-se na verdade histórica. E Magalhães Basto vai ao ponto de lhe prestar abonação desta guisa: se Arnaldo Gama, mestre de quantos se dedicam ao estudo das velharias portuenses, tinha as suas dúvidas relativamente às afirmações do eruditíssimo Viterbo, forçoso é duvidarmos também (Sumário de Antiguidades, edição Livraria Progredior, Porto, 2ª edição, 1963, pág. 170).
Mas retornando ao meu intento. Ficar a casa dos Belezas de Andrade à entrada da Rua da Bainharia é situá-la completamente distante da Rua Chã, onde os documentos oficiais a localizam, precisamente em sentido oposto ao indicado pelo romancista.
A Bainharia começa na actual Rua Mousinho da Silveira (que no século XVIII ainda não existia), portanto entestando com o Rio da Vila que corre actualmente sob a aludida Rua, e ia até ao muro velho, a cerca do primitivo burgo. Termina, na sua parte norte, na Rua do Souto.
Para todos os que se encontrem neste final da Rua da Bainharia, onde Arnaldo Gama localiza a casa em questão, e queiram ir para a Rua Chã onde culminara o motim de 1757, impôe-se subir o resto do morro e para o fazer ou têm que ir pela Rua dos Pelames, flectindo à esquerda, ou pela Rua de S. Sebastião à direita até atingir a actual Avenida D. Afonso Henriques.
O arruamento da Bainharia não tem pois qualquer conexão directa com a Rua Chã.
Mais concretamente, louvando-me no saudoso amigo Dr. Eugénio Andrea da Cunha e Freitas (in Toponímia Portuense, edição de Contemporânea Editora, Lª, 1999, pág. 101) - a Rua Chã já existia em 1293, e compunha-se de dois troços distintos: do Arco de Vandoma até ao Corpo da Guarda, chamava-se Rua das Eiras, daí até à Rua do Cativo e Paço da Marquesa, Rua Chã. Porque uma era sequência da outra, toda ela foi conhecida também por Rua Chã das Eiras. No encontro da Rua Chã com a do Loureiro existiu um chafariz mandado levantar pelo Senado da Câmara em 1635. Foi ordenada a sua demolição em 1784 porque obstruía a entrada da rua, aí muito estreita.
Vamos agora ler alguns documentos que indicam o arruamento onde ficava a casa deste ramo dos Belezas. Por eles, como se irá concluir, só ficam duas localizações possíveis, ou na Rua Chã ou na Rua do Loureiro.
Lê-se no assento de baptismo de Luis Beleza de Andrade, lavrado pelo pároco António da Costa Falcão no livro de registos paroquiais da freguesia da Sé do Porto que «Luis filho de Jozeph Vicente de Andrade e de sua molher donna Thereza Teixeira, da rua chan, nasceo aos quatorze de Setembro de setecentos e dezoito», acrescentando que foi baptizado no dia 21 do dito mês de Abril, e foram padrinhos o Reverendo António Beleza de Andrade por procuração passada a Dom Bento do Espírito Santo, e José de Belém (livro B nº 12 a fls. 206).
Também, no livro de registos de óbitos da Sé do Porto (1726-1750, fls. 110), foi exarado que Mariana de Araújo, assistente em casa de José Vicente Beleza de Andrade, morador na Rua Chã, faleceu em 23-12-1733; e em outro assento de óbito, este de 26-6-1737, foi registado que faleceu Francisco de Sousa criado de José Vicente Mestre de Campos da Rua Chã (sic) (Óbitos da Sé 1726-1750, fls. 171 verso).
A escritura de dote para casamento de Luis Beleza de Andrade com a sua primeira mulher D. Joana Xavier de Azevedo Soares de Avelar, lavrada pelo tabelião do Porto António Mendes e Matos, em 14-7-1753, nas casas do pai da noiva Dr. Luis Soares de Avelar, nobre cidadão do Porto, juiz executor proprietário da Dízima da Chancelaria da Corte Casa da Suplicação, na identificação do noivo e seus pais, lê-se: «e da outra parte José Vicente de Andrade Beleza, nobre cidadão da governança e da dita Cidade, e Mestre de campo pago de auxiliares, da guarnição da mesma, com seu filho legitimo Luis Belleza de Andrade que teve de sua mulher Dona Theresa Maria Teixeira, moradores na Rua cham da dita cidade...» (Arquivo Distrital do Porto, PO-9º Nota 108, 3ª série, fls. 73 a 75).
Em 11-4-1735, o tabelião do Porto António Mendes e Matos, desloca-se (como ele escreveu: aonde eu Tabeliam vim) às casas de morada do então tenente José Vicente de Andrade Beleza onde este se encontrava presente com sua mulher Dona Teresa Maria Teixeira. Naquele acto fizeram estes outorgantes a seguinte ratificação de confissão de dívida. O outorgante marido diz que estando a mulher ausente na Quinta de Valdigem, precisou de três mil cruzados para pagar as bulas do filho Reverendo António José de Andrade Beleza, chantre da Sé de Lamego, e pedira essa importância ao Dr. João Álvares de Brito, mediante o juro anual de 5%, titulando o mútuo por documento de confissão de dívida em 26-12-1733; também precisou de um conto de reis ao juro anual de 5%, para pagar a Manuel Álvares Correia, do Porto, a quem os devia de empréstimo que lhe fizera para as obras dos novos armazéns que fez em Vila Nova de Gaia, e fora o supracitado Dr. João Álvares de Brito quem lho emprestara mediante escrito particular assinado em 15-1-1734; finalmente, ainda precisou novecentos e sessenta mil reis para pagar a João Antunes Guimarães, do Porto, o empréstimo que deste obteve com vista a custear também as obras dos armazéns em Gaia, e socorreu-se do Dr. João Álvares de Brito que lhe emprestou a dita quantia ao juro anual de 8,4%, mediante escrito assinado em 13-3-1734. E porque de presente ele José Vicente de Andrade Beleza estava para ir para a campanha por ordem de Sua Magestade, agora ele e a mulher D. Teresa Maria Teixeira ratificavam as três aludidas dívidas, que totalizavam a quantia de três contos cento e sessenta mil reis
[1].
À colação abre-se breve historial neste novo tema. Pode-se localizar no tempo, com estreita margem de erro, a edificação dos belos armazéns na margem esquerda do Rio Douro, em Gaia, na Avenida Diogo Leite, que depois foram vendidos à firma vinícola A A Calem & Filho, Lª e que ainda ostentam em bom lavrado, o brasão com as armas passadas ao mestre de campo em 23-2-1722 (fotografias números 6 e 7).
Teriam sido edificados nos finais da segunda década do século XVIII, quando muito nos princípios do ano de 1730, portanto, anteriormente ao referido ano de 1734, quando ele contraiu o empréstimo para custear as despesas com a obra, em 15 de Janeiro de 1734, em cuja escritura afirmou que era para as obras dos novos armazéns que fez em Vila Nova de Gaia. Com efeito, já em 18-8-1730, ele hipoteca-os para garantir o empréstimo obtido junto do Reverendo Manuel Carneiro de Araújo.
Os Beleza de Andrade precisavam de amplos armazéns pois, segundo Susan Schneider, armazenavam mais de setecentas pipas nos seus inúmeros lagares situados em Gaia
[2].
Também, a fotografia daqueles armazéns foi publicada na excelente História de Gaia, monografia editada pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, e que saindo em fascículos, ficou incompleta
[3].
Camilo Castelo Branco, em Mosaico e Silva registara que a inverneira de 1754 fez engrossar a corrente do Douro a ponto de se alagarem ricos depósitos de vinhos na margem esquerda, em Vila Nova de Gaia e que o mais prejudicado, entre os proprietários de armazéns foi José Vicente de Andrade Beleza. Mas este nem sempre foi o mais desafortunado com as cheias do Douro.
Numa rescensão das cheias feita pelo jornal portuense O Comércio, em 27-2-1855, menciona-se a cheia do ano de 1739 decorrente de copiosas e persistentes chuvas. Em 3 de Dezembro daquele ano principiou a crescer o rio e corria tão arrebatado que fazia ondas como o mar. Lê-se nessa notícia: Em Vila Nova arruinou todas as casas da praia, das quais também caíram algumas; e os armazéns a todos levantou o Rio os telhados, menos aos do Beleza, e os arrasou com perda de fazendas.
Foi efectivamente, o mestre de campo abastado proprietário. Na demarcação pombalina da região produtora do vinho fino ou vinho do Porto, após a criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, os terrenos da sua propriedade em riba Douro mereceram o qualificativo dos de melhor produção, ficando no mapa a cor vermelha, o que significa produzirem o vinho da Feitoria ou vinho fino de embarque
[4].
A campanha a que José Vicente de Andrade alude na escritura de confissão de dívida de 11-4-1735, traduziu-se na mobilização geral ordenada em resultado do incidente diplomático ocorrido em Madrid, em 20-2-1735. A casa do embaixador português Pedro Álvares Cabral, senhor de Belmonte, foi invadida por soldados espanhóis que prenderam os servidores daquele a pretexto de terem tomado parte num motim. Isto porque um preso conseguiu refugiar-se na embaixada portuguesa, com o auxílio de dois criados do embaixador. Com a violação das imunidades diplomáticas, a embaixada portuguesa foi assaltada e capturados 19 criados.
Era o agravamento das tensões existentes entre as duas nações peninsulares. Com efeito, vinha aumentando a tendência belicista do monarca espanhol Filipe V, e as dissenções deste com o filho, o Príncipe D. Fernando, casado com a princesa portuguesa D. Maria Bárbara, mais davam ansa à preponderância do partido anti-português na corte espanhola.
Ao incidente diplomático de Madrid, D. João V respondeu com a mobilização geral. Foram guarnecidos os pontos delicados da fronteira alentejana. O marquês de Capicciolatro, embaixador de Espanha, foi proibido de comparecer na Corte e a embaixada espanhola foi assaltada por uma companhia de granadeiros que prendeu 19 criados. Ademais, o monarca português pediu o auxílio inglês e o embaixador britânico ofereceu logo uma força de 20.000 homens e uma esquadra de 20 navios.
Apesar destes extremos a guerra não eclodiu e o desagradável incidente foi liquidado em 16-3-1737, com a mediação da França, da Inglaterra e da Holanda, pelo chamado acordo de Paris
[5].
Ainda a propósito deste incidente, recorde-se que no alvará de foro de D. João V, passado em Lisboa a 14-2-1755, pelo qual foi tomado por Fidalgo da Casa Real com mil e seiscentos reis de moradia por mês e um alqueire de cevada por dia, justifica-se a mercê tendo outrossim consideração aos serviços de «…» José Vicente de Andrade Beleza, natural da cidade do Porto, filho de Manuel de Andrade Beleza, que foi cavaleiro da ordem de Santiago, obrados em praça de soldado infante, e nos postos de alferes, tenente, capitão do Regimento da cidade do Porto, e ultimamente no de mestre de campo de um terço de auxiliares do partido da mesma cidade, por espaço de trinta anos, três meses e dezanove dias continuados do primeiro de Novembro de 1720 até 9 de Março de 1752, que ficava continuando, vindo no ano de 1735 com a sua companhia para o acantonamento do Ribatejo, e 11 de Agosto do mesmo ano, sendo capitão com ela para a província do Alentejo a incorporar-se no seu Regimento, e no tempo que nesta assistiu observar com acerto as ordens dos oficiais maiores, e depois se recolher à dita cidade do Porto em 12 de Janeiro de 1736 havendo-se nesta ocasião com demonstrações de grande e distinto zelo, de meu serviço
[6].
Compreende-se desta forma a alusão que José Vicente faz à campanha a que estava destinado por ordem de Sua Majestade.

Em 24-8-1746, o mosteiro de Santo Agostinho da Serra, situado na Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, emprazou a José Vicente de Andrada (sic) Beleza um pedaço de monte junto à calçada que do mosteiro vai para os Guindais, por baixo do Senhor do Calvário, e que ele possuía por morte do pai, Manuel Beleza de Andrade que fora a terceira vida do prazo.
Ficava aquele terreno por baixo do Senhor do Calvário pegado à calçada do Pilar que vai da Capelinha do mesmo Senhor para o Senhor de Além e para os Guindais.
Constituía a testada do monte que ficava fora da parede do quintal da quinta da Boavista, dele foreiro, desde o canto da parede junto à viela ou atalho que corre entre a dita Quinta e a pertencente a Manuel Álvares Souto, capitão da companhia de Grijó, até ao outro canto da referida parede junto à serventia das águas que descem do Monte para a praia, e vai dar à porta das casas do mesmo José Vicente que estão pegadas aos armazéns.
Este documento tem grande importância para definir a extensão da Quinta da Boavista, recentemente (por volta de 1968) desaparecida para urbanização e que no seu final estava delimitada pela Rua do Choupelo a nascente, contendo no portão os dizeres QUINTA DA BELEZA e, no remate da pedra de granito, o brasão com as armas de Beleza, Andrade, Pereira e Moutinho, em escudo perlado e encimado por um coronel de nobreza, em substituição do elmo e timbre (ver fotografias 3 e 4).
O conjunto do portão está depositado no jardim da Casa Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia.
Mas a quinta não se circunscrevia ao lugar do Terreirinho. Prolongava-se até ao monte emprazado pelo mestre de campo sito junto à Serra do Pilar, descia pelo morro e junto à praia, ou seja, junto à zona ribeirinha, pegava com os armazéns por ele mandado edificar.
Para se compreender a extensão da quinta até próximo da Serra do Pilar temos de nos reportar ao século XVIII. Não existia comunicação com o Porto, pela parte de cima de Gaia. O acesso só era feito pelo rio, de barco. Na História de Gaia atrás mencionada, elucida-se que até 1744, as comunicações com a margem direita do rio Douro faziam-se por intermédio de barco, tendo sido a partir dessa data que se estabeleceu uma carreira para transportes de passageiros e de carga entre as duas margens.
Só em Agosto de 1806 foi inaugurada a célebre ponte das barcas que três anos depois cedeu ao peso da multidão na fuga desordenada às tropas francesas do marechal Soult, provocando uma catástrofe.
Em 1834 foi esta substituída pela Ponte Pênsil, ainda na parte baixa, junto ao rio. Só nos finais do século XIX a parte de cima de Gaia teve acesso ao Porto, através da Ponte D. Maria, inaugurada em 4-11-1881, com circulação ferroviária, e a Ponte de D. Luís, para circulação rodoviária e de peões, tendo esta sido, em 2005, alargada para circulação do metro e de peões.
Aquela obra editada pela Câmara Municipal de Gaia lembra que, em meados do século XX, podia observar-se ainda áreas agrícolas no que é a actual cidade de Gaia, e acrescenta: Basta lembrar que nessa altura a Avenida da República apresentava traços de ocupação agrícola que na actualidade são praticamente inexistentes
[7].
Mas retornando ao prospecto de identificar o local da casa onde assistia a família de mestre de campo, na escritura de 27-8-1766, exarada nas notas do tabelião do Porto Luís Jopsé Coelho de Almeida, também ele a exercitar o seu ofício precisamente na Rua Chã, o primeiro outorgante é assim identificado: José Vicente de Andrade Beleza Fidalgo cavaleiro da casa de Sua Majestade Fidelíssima e Mestre de Campo pago de Infantaria Auxiliar do Partido desta cidade e morador na Rua Chã dela. Os outros outorgantes foram João Nevel cavaleiro professo da Ordem de Cristo e o Padre Pedro José Alves Souto, ambos moradores na freguesia de Santa Marinha de Vila Nova de Gaia.
Na parte dispositiva do contrato, João Nevel doava ao mestre de campo todas as águas vertentes que nasciam na sua propriedade no sítio da Fervença, em Gaia, onde se localizavam os armazéns dele João Nevel acima do cabeçudo para a parte do Mosteiro da Serra, a fim do Beleza utilizar essas águas, conduzindo-as pelo cano de pedra por onde corria a que vinha da Fervença, para a Quinta da Boavista situada nos Guindais. E porque o cano passava pelo quintal do padre Alves de Souto, este obrigava-se a não impedir ou embaraçar o curso daquelas águas doadas, nem da outra que vinham da Fervença, e bem assim a conservação e limpeza do cano. Para o efeito, o mestre de campo ficava com a chave de uma porta do quintal do padre e este, em compensação, gozará o direito de regar o quintal enquanto a água se mostrar sobrante à Quinta da Boavista.
Em remuneração pela cedência das águas vertentes, o mestre de campo constituiu naquele acto uma servidão de passagem por um bocado de terreno do seu quintal da Barroca a favor dos armazéns de João Nevel. Para o exercício desta serventia haveria uma porta sempre fechada, colocada e consertada à custa do Nevel
[8].
Em 15-5-1730, o tabelião José Vicente da Silveira desloca-se às casas e morada de José Vicente Beleza de Andrade na Rua Chã, da cidade do Porto, onde se achavam presentes este com sua mulher Dona Teresa Maria Teixeira, com suas filhas Dona Josefa Elvira Beleza e Dona Bernarda Teresa de Andrade. E por estas duas últimas outorgantes foi dito que estavam aceites para Religiosas no Mosteiro de Arouca onde os ditos seus Pais as metiam «…» que de todo o importe de suas legítimas assim Paterna como Materna, e do mesmo modo de toda e qualquer herança ou bens em que viessem a suceder, de tudo faziam doação a favor do Morgado que os ditos seus Pais tinham instituído doando tudo para que se vincule e una ao mesmo Morgado e logre o sucessor dele que os ditos seus Pais nomearão…
[9].
Vem a ponto recordar que mais uma filha do mestre de campo José Vicente professou no Convento de Arouca, de nome Ana Beleza de Andrade. Também nascera na Casa da Rua Chã, no Porto. Esta e a irmã Bernarda Teresa mandaram fazer, em madeira pintada, uma pauta para registo da roupa conventual, que actualmente se encontra em exposição no Museu do Convento de Arouca, contendo a seguinte legenda:

Sacristia de Arouca 1783
Este mostrador ou pauta da Roupa mandarão fazer as duas irmãns Religiozas D. Bernarda Beleza de Andrade e D. Anna Beleza de Andrade, sendo ambas sacristãns no Convento de Arouca no mês de Novembro de 1783.
A parte inferior da tábua contém a indicação do marceneiro seu autor:
Por Manoel da Saritas Barboza, natural de Gemunde &
Esta abreviada relação e análise da massa documental comprova que a casa dos Belezas de Andrade ficava na Rua Chã. No entanto, outros documentos já a localizam na Rua do Loureiro que é o arruamento que vai da actual Praça de Almeida Garrett e Estação de S. Bento - onde sediava o Convento de S. Bento de Avé Maria, demolido para a edificação daquele terminal ferroviário, do risco do arquitecto Marques da Silva - até à Rua Chã.
Segue o comprovativo.
Em 17-10-1730, o convento de Santo Eloy do Porto, dá de aforamento em três vidas de livre nomeação, a José Vicente de Andrade Beleza, cidadão dos da governança da cidade do Porto, e morador na Rua do Loureiro, uma morada de casas sobradadas sitas na Rua da Reboleira, de que foram última vida no prazo velho D. Ana Maria Ventura Pereira, viúva que ficou de Manuel Beleza de Andrade, cavaleiro da Ordem de Aviz (como está na escritura mas erradamente, pois era cavaleiro da Ordem de Santiago).
No auto de apegação as aludidas casas foram confrontadas pelo nascente com as de Bernardo Pinto de Carvalho, boticário, do poente com as de Manuel da Rocha Santos, do norte com a Rua da Reboleira e do sul vão entestar com o muro da cidade para onde têm porta e janelas e dois sobrados.
Esta escritura foi lavrada nas notas do tabelião do Porto, António da Holanda, da qual eu possuo duas certidões, uma requerida pelo outorgante José Vicente de Andrade Beleza, contendo no verso da última folha uma declaração por ele escrita – ver a foto nº 5 - rectificando que, por engano, na escritura ficou a constar que o laudémio era de quarenta um, mas este prazo ficou devoluto por óbito da mãe Ana Maria Pereira, terceira e última vida do prazo velho, pelo que o domínio útil foi devolvido ao senhorio directo o Convento de Santo Eloy dos padres lóios de S. João Evengelista, e na feitura do novo prazo agora ao declarante puseram o laudémio dez um; e outra certidão requerida pelo capitão João Beleza de Andrade, do lugar de Matosinhos, primo de
Luis Beleza e herdeiro universal deste, passada em 28-2-1784, já depois do óbito do requerente.
Luís Beleza de Andrade casou em II núpcias com D. Maria Felisberta de Vilhena, filha de José António Pinto da Fonseca, fidalgo da Casa Real, natural da ilha de Malta, e de sua mulher e prima D. Maria Inácia Cerqueira Pinto Vilhena, os quais casaram em 22-5-1746, neta paterna de Manuel Pinto da Fonseca, que nasceu em 24-5-1681, em Lamego, eleito Grão-Mestre da Ordem de Malta em 18-1-1741, e de D. Rezona Paullachi, da ilha de Malta, e neta materna de Francisco Vaz Pinto, fidalgo da Casa Real, natural de Lamego, e de Clara Cerqueira, de Amarante.
O referido Francisco Vaz Pinto era filho de Miguel Álvaro Pinto, senhor da Quinta de Quadros, em Lamego, fidalgo da Casa Real, alcaide-mor de Ranhados, capitão-mor de Lamego, cavaleiro da Ordem de Cristo, e de sua mulher D. Ana Teixeira, neto paterno de Álvaro Pinto da Fonseca, cavaleiro da Ordem de Cristo, fidalgo da Casa Real, alcaide-mor de Ranhados, senhor de Quadros, e de sua mulher e prima D. Ana Pereira Coutinho.
Por sua vez, Álvaro Pinto da Fonseca era filho de outro do mesmo nome e de sua mulher D. Antónia de Vilhena, neto paterno do morgado de Balsemão
[10].
A D. Ana Pereira Coutinho era filha de Belchior Pereira, senhor da Casa de Penedono, e de sua mulher D. Leonor Coutinho
[11].

Depois de toda esta arenga genealógica, retorno à matéria sujeita ao escalpelo analítico.
Em 23-8-1771, o tabelião do Porto, Luís José Coelho de Almeida compareceu nas casas de morada do Dr. Luís Beleza, à Rua do Loureiro, da cidade do Porto, para lavrar a escritura de obrigação em que foram outorgantes aquele e a esposa D. Maria Felisberta de Vilhena, e bem assim Manuel Ferreira da Silva, morador na Rua Chã, na qualidade de procurador de Luís de Melo Pereira Coelho Correia, fidalgo da Casa Real, e de sua mulher D. Inês Angélica de Araújo, também moradores na Rua Chã.
Neste contrato os primeiros outorgantes, Luís Beleza de Andrade e mulher, reconheceram a dívida de quinhentos mil reis contraída em 18-8-1730 pelo já falecido mestre de campo José Vicente de Andrade Beleza, e a dívida de um conto de reis, contraída em 9-11-1731, junto do reverendo Manuel Carneiro de Araújo, mestre escola da Sé do Porto, irmão da contraente D. Inês Ferreira de Araújo.
Para garantir aquelas duas dívidas o mestre de campo hipotecara as casas em que viviam os agora primeiros outorgantes, na dita Rua do Loureiro, e as que têm, com seus armazéns, no lugar de Vila Nova de Gaia.
Por ter falecido o credor padre Manuel Carneiro de Araújo, sucedeu-lhe no crédito a irmã D. Inês Angélica. Por sua vez, havendo falecido o originário devedor José Vicente de Andrade Beleza, sucedeu-lhe por vocação legítima, como universal herdeiro, o filho Luís Beleza de Andrade que declarou se não acha com dinheiro prompto, por isso pediu à credora D. Inês Angélica a prorrogação do prazo de vencimento daquelas obrigações, confessando-se ele e a mulher devedores daquelas quantias, com o juro anual de cinco por cento
[12].
Importa tecer algumas considerações sugeridas pelo teor da aludida escritura, lavrada três meses antes do falecimento de Luís Beleza, ocorrido na sua Quinta do Bom Retiro, em Valença do Douro.
Os armazéns de Gaia estavam edificados já em 1730, pois, nessa data, foram onerados com a hipoteca acima referida.
Como atrás ficou mostrado, documentos há que dão Luís Beleza morador numa casa da Rua do Loureiro, outros na Rua Chã, e ainda outros localizam a moradia ao fundo da Rua Chã, o que tudo se reconduz ao mesmo local, como veremos de seguida.
Este meu engulhoso interesse em identificar a casa advém de ter servido de palco a um facto histórico de grande relevo, nomeadamente, para a história da cidade do Porto.
Foi assaltada e saqueada na amotinação popular de 1757 contra a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro porque nela também vivia o provedor, o referido Luís Beleza e na casa anexa guardava-se a documentação da mesma Companhia.

Em 23-9-1953 fui cumprimentar o Dr. Artur de Magalhães Basto no edifício da Câmara instalada então no Paço Episcopal, e para lhe entregar o meu artigo sobre o Dr. Luís Beleza a fim de ser publicado na revista O Tripeiro de que ele era o director, e que efectivamente aconteceu em Novembro do mesmo ano[13].
Na conversa muito agradável então mantida ele disse-me ser sua convicção ter identificado a casa onde vivera o Dr. Luís Beleza, saqueada no motim de 1757. Situa-se nos limites da Rua do Loureiro e da Rua Chã.
Fora mesmo ao seu interior rastrear, sem êxito, qualquer vestígio revelador.
Ora a escritura de 23-8-1771, alicerça a conclusão do ilustre investigador portuense. A casa situa-se precisamente na confluência das duas artérias, ao arredondar a curva, no lado esquerdo do renque de casas, na descida, da Rua Chã para a Rua do Loureiro. Ali onde se situava o chafariz demolido só em 1784, como acima ficou mencionado.
Posto que alterada na fachada do rés-do-chão, agora capeada a mármore de uma cor agressiva, e nela rasgado o vão de grande montra, é uma casa alta bem típica do burgo tripeiro igual às que Ramalho Ortigão se refere, e que actualmente tem os números de polícia 166-168 da Rua do Loureiro, última casa desta rua.
Foi recentemente sujeita a obras de restauro de muita qualidade pela Câmara Municipal do Porto.
Apresenta um belíssimo prospecto lavrado em cantaria com influência do barroco espanhol.
A casa da Rua do Monte dos Judeus (foto nº 1), com o traçado do barroco espanhol pertence a outro ramo da família.
Admito ter sido o mesmo mestre pedreiro o autor das duas moradias, tanto mais que a de Miragaia foi mandada edificar por um irmão do José Vicente de Andrade Beleza, de nome Francisco Xavier Beleza de Andrade.

Conta Susan Schneider em O Marquês de Pombal e o Vinho do Porto – Dependência e Subdesenvolvimento em Portugal no Século XVIII, que muitos membros da melhor nobreza proprietários das grandes vinhas do Douro passavam apenas alguns meses por ano na região do vinho. O resto do tempo passavam-no nas suas elegantes casas na cidade, com janelas de grades ornamentadas e brasões policromados sobre as portas.
Acrescenta que tais casas ficavam nos bairros elegantes dos arredores do Porto, ou na aristocrática Rua Chã. E cita o nome dessas famílias – os Leite Pereira, os Pacheco Pereira, os Belleza Andrade, os Sá e Menezes, os Leme Cernache, os Magalhães Coutinho e os Sousa de Mateus, que formavam a aristocracia do vinho do Porto e governavam a cidade e os arredores.
Elucida ela, em dado passo, que Luís Beleza de Andrade era um dos principais cultivadores do Alto Douro e a família possuía grandes vinhas em todo o Douro, em Valdigem, Gouvães e Ventozelo, belas propriedades que produziam pelo menos 200 pipas do vinho mais procurado em cada ano. E acrescenta que, como muitos outros fidalgos do vinho, de igual categoria, os Andrade Belleza também tinham um belo palácio no Porto, onde passavam uma grande parte do ano.
Em nota informa que para se conhecer uma fotografia da sua casa no Porto ver o livro do conde de Campo Belo Portas e Casas Brasonadas do Porto e seu Termo[14].
Há aqui manifesto engano. A casa reproduzida na belíssima aguarela de Gouveia Portuense é a da Rua do Monte dos Judeus, na freguesia de S. Pedro de Miragaia, próximo do edifício da Alfândega, mandada construir, e onde morou e faleceu Francisco Xavier Beleza de Andrade, tio de Luís Beleza de Andrade.
É tempo de eu sair da Casa da Rua Chã, mais correctamente, da Casa da Rua do Loureiro, descansar e arranjar fôlego para, na segunda parte, prosseguir este labor reconstitutivo. Mas antes, para desafogar-me da apojadura deste meu engulho, carreio mais um importante elemento a cimentar o susudito.
O Dr. Fernando de Oliveira, publicou a sua dissertação de conclusão do curso na antiga Faculdade de Letras do Porto, sob o título O Motim Popular de 1757. Escreveu no que vem ao meu propósito: Depois, como no fundo da mesma rua Chã morasse Luis Beleza de Andrade, também vereador da Câmara e provedor da odiada Companhia, os amotinados apedrejaram-lhe as casas e fizeram menção de nelas penetrar com violência. De dentro responderam ao desatino com tiros.
Está correcta esta sua afirmação.

Para informações complementares sobre a história da família Beleza de Andrade e dos outros ramos procedentes da Casa de Levandeiras, recomenda-se a consulta do blog do meu prezado Primo Dr. Luis Filipe Beleza Gonçalves Vaz, dotado de raro entusiasmo por estes estudos e de grande seriedade intelectual:
NOTAS:
[1] Tabelião do Porto, António Mendes e Matos, ADP cota: PO-9-N. 35, fls. 69.
[2] In O Marquês de Pombal e o Vinho do Porto, pág. 59, edição de A Regra do Jogo, Edições, Lª, Lisboa 1980.
[3] Respectivamente a pág. 390 e 392 e a pedra de armas foi publicada na capa do fascículo nº 8.
[4] Cfr. Anais do Instituto do Vinho do Porto, 1950, 2ºvolume, pág. 132 e seguintes.
[5] História de Portugal, 1640-1750, pág. 262 a 264, do Prof. Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, e Nobreza de Portugal, vol. I, pág. 596, coordenada por Doutor Afonso Eduardo Martins Zuquete, edição Editorial Enciclopédia, Lª, Lisboa 1960.
[6] Ver Genealogia dos Belezas de Andrade, por Rui Moreira de Sá e Guerra, pág. 202-203, Braga 1966.
[7] História de Gaia, pág. 29.
[8] Tabelião do Porto, Luís José Coelho de Almeida – PO-Nota 73, 4ª série, fls. 68 a 68 verso.
[9] Nas notas do tabelião do Porto, José Vicente da Silveira.
[10] Ver Pinho Leal, no seu Portugal Antigo e Moderno, vol. IX, pág. 537, ao tratar do solar dos Pintos, senhores de Felgueiras, no termo de Tendais.
[11] Cfr. Nobiliário de Felgueiras Gaio, em título Pintos § 39 onde se dá conta que, deste casamento de Luís Beleza de Andrade não houve geração, e título de Alcoforados § 5º N. 14; História do Bispado e Cidade de Lamego – Barroco I, pág. 552 e 553, de Padre Manuel Gonçalves da Costa.
[12] ADP, cota: PO-9-4ª série, N. 102, fls. 43 a 44 verso.
[13] Não ficou esquecida a data da visita, porque nela o Dr. Magalhães Basto ofereceu-me duas separatas dos seus trabalhos publicados no Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, a saber sobre Dom Bartolomeu Pancorbo e a propósito dum notável edifício quinhentista que existe na Foz do Douro, pois nessas separatas, com a dedicatória, apôs a data de 23-9-1953.
[14] Obra citada da autoria de Susan Schneider a págs. 56, 57 e 87.


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